quarta-feira, 8 de abril de 2020

Life in times of (2)


Como muitas pessoas no mundo inteiro, o horário de passear o cachorro é ‘o filé mignon’ do dia (se me perdoam a alusão aos prazeres carnívoros, um tanto de mau gosto nos momentos atuais, eu mesma acho).  O Zeus é boxer, e brincalhão sem igual – parece confirmar o apreciação feita nesses dias por um velho amigo meu, que disse que a raça, apesar da sobrancelha franzida que lhe  dá ares de pensador profundo, é ‘o palhaço do reino canino’- e só de me ver pondo os tênis, sai dando pulos de alegria que o catapultam a um metro do chão.  Após nossas duas semanas de saídas, consegui traçar o que me parece ser a melhor rota:  saímos à direita, passando pela casa de nossos únicos vizinhos simpáticos, uma família, aliás, que também vive à espreita dos melhores horários para ocupar o pedaço de rua que lhes cabe, para o passeio de bici das crianças;  vamos seguindo o contorno da rua,  passando pelo mato denso de onde alguma vez  a vizinhança foi surpreendida por uns macacos (e bem na época do famigerado pânico da febre amarela), atravessamos a ponte de madeira, e seguimos até a rua mais movimentada, onde passam carros e motos mas ainda assim, raras as vezes cruzamos caminhos com outros humanos, ou humanos com seus respectivos cães).   Depois nos enveredamos por outras ruas, mais tranquilas, arborizadas.

O Zeus sempre vai muito animado, mas tem dia que estou com meus nervos a flor de pele, imaginando os mais absurdos dos encontros possíveis com o diabo do coronavirus – como se fosse uma criatura viva e voadora, capaz de aparecer do nada, do céu, do chão, só para invadir meus pulmões e me fazer mais uma na sua lúgubre lista.   Nesses dias, eu encurto nosso passeio,  e ele, pois, não tem escolha nessa história. 

Outros dias, vence meu lado mais racional, e isso de ter o privilégio de morar num bairro com baixa densidade populacional e pessoas que evidentemente, até agora, vêm respeitando a quarentena, me anima também.   Por exemplo, ontem:   

a primeira manhã mais fria, e andamos para mais longe, exploramos as duas ruas sem saída perto do parque – onde preocupadamente  percebo os sinais de destruição das fitas que barravam, pelo menos simbolicamente, a entrada – mas ainda  somos  nós os únicos representantes das nossas respectivas espécies.   À distância, vejo os trabalhadores da prefeitura, fazendo a costumeira poda da densa vegetação que contorna a  rua, conversando entre eles, como se todo estivesse normal, mas quando chegamos mais perto de onde estavam, já tinham ido almoçar. 

 Passamos por uma casa onde o foodtruck de pierogi antes ficava estacionado na rua. Agora está bem encaixadinho na entrada, com uma placa convidando o pessoal a ‘buscar  aqui sua encomenda’.  Não tem ninguém à vista,  mas sim um grande cardápio, e ao lado, um pote bem gordinho de álcool gel.

Embora outras opções existam, seguimos o mesmo caminho de volta -  menos gente, e menos cachorro também, já que o Zeus, apesar do sua cara que assusta alguns humanos que não sabem muito bem a diferença entre boxer e pitbull,  é facilmente amedrontado e principalmente, por cães bem menores do que ele.  Chegando perto da ponte, vejo o contorno de uma pessoa, na verdade, de uma mulher e uma criança, a mãe agachada e conversando, mostrando alguma coisa à pequeninha. Reconheço a sujeita – uma jovem que quando criança, brincava com meus filhos, quando nossa rua ainda não era asfaltada, quando ainda parecia chácara ou bairro do interior por aqui, quando as pessoas ainda chegavam até botar uma grande mesa de madeira bem no meio da estradinha para festarmos, todos juntos...  Mas nesses últimos tempos, outras coisas aconteceram.  Muitas coisas, muita ‘água embaixo da ponte’.  Também literalmente.

Vejo que ela já me viu. Vira mais um pouco de costas, enquanto vou chegando mais perto.  Motivos, uma de duas.  Ou duas de duas. Não sei.  Pretendo passar reto.  Ela, sem levantar, alça a cabeça, vejo o esboço de um sorriso tímido, e ela me cumprimenta, falando meu nome.  E eu aproveito o momento, pois havia muito tempo que lhe precisava dizer umas quantas coisas.   Olhei para ela:
    - Sabe, fulana, eu não costumo conversar com eleitores do Bolsonaro.  E muito menos com vizinhos que xingaram meus filhos.  Que vergonha, hein? Quanto preconceito.  E quanta tragédia que estamos vivendo,  graças a vocês.

Ela, que tanto tinha vociferado, no grupo WhatsApp da rua, ela, a mais fanática, a mais negacionista, a mais ridícula e braba de todos.  Hoje fica lá agachada, olhando timidamente para mim.  Sem palavras.    

Zeus e eu seguimos nosso caminho, e me pergunto se terei ainda a oportunidade de tirar esse peso de cima, de olhar para a cara de outras pessoas que conheço, e dizer bem isso, o que a gente está guardando dentro, para quando vier o momento cara-a-cara.  E sabendo também que isso não mudará nada.  O rumo da história, as péssimas escolhas de muitas pessoas, e tudo o que virá por causa disso.  Volto a casa, apenas um pouquinho mais leve.

Farmers’ market (w-i-p )

  Farmers’ market   Though the brown bags of organic rice dwindle and cost us um olho da cara       bananas are stacked in full corn...