sábado, 29 de janeiro de 2022

Uma colagem, e repostagem do poema que a inspirou.


 


Fábula III, ou “as formas da coragem”.

 

                    Para Joyce, Hettie e Diane.  E para Andressa tb.

 

Era apenas uma menina

e o mundo, um lugar lotado

de criaturas com sonhos baratos.

Pegava todos os dias, de manhã

o bonde que descia a ladeira,

seu coração dando saltos no ponto

     onde a curva sugeria uma fuga

onde a mão do condutor podia

vacilar por um instante e perder

o rumo.

 

Noitezinha, na hora da sopa

a mãe chamava

para ela colocar na mesa

os pratos azuis, os guardanapos de pano

amarelados, as grandes colheres,

e ela obedecia,

mansinha, as unhas de esmalte

     de uma semana

guardando seu segredo escarlate.

 

Quando lá fora chovia, como de

   costume, gotas misturando-se com

poeira e através da janela suja 

todas as formas

   alongavam-se, encurtavam-se,

 ela via figuras

dançando na água ou nas chamas

da noite e sabia que

em algum lugar o caminho bifurcava

e seria só o rumo que ela conseguisse

vislumbrar quando todo mundo parasse

de lhe falar, de lhe indicar com

as mãos ou apontar com os dedos

o enferrujado dever, ou quando ela

não mais escutasse.

 

Os meninos pulavam

os vagões do trem ou as

ondas mais altas, e o tempo todo ela

pensava que isso não era para ela

porque não era longe o suficiente

ou  talvez porque ser

   apenas uma triste

                fêmea da espécie

não lhe permitisse um lugar

entre os que desafiavam

os mares, a Bruxa de Novembro

ou o Chinook.  Enquanto isso

os garotos saiam e voltavam à casa.

Ela ouvia suas histórias e percebia

como esticavam suas meia-verdades

sobre a bruma, as baleias, os

adversários com suas espadas,

ou as armas comuns do bandido

         da esquina.

Dançava sozinha frente ao espelho,

  diante de escuros olhos ciganos,

examinando a curva dos seus braços,

o quadril que se alargava,  os

pequenos seios que endureciam sob

   um fino tecido, as pernas que embora

curtas pudessem carregá-la muitas milhas.

Sentia então um estranho tipo

       de medo-coragem

que lhe dizia coisas inteligíveis:

que poderia dormir ao relento,

 construir um provisório

abrigo, aprender as línguas de

humanos e tigres, ser nômade

como qualquer uma

ou como nenhum outro.

 

And then she went...

 

 

 

 -   Miriam Adelman