quinta-feira, 12 de maio de 2016

Crônica.

Laboratório.
                           

Nada como uma boa companhia.  Desta vez é o livro Blowout  da Denise no meu colo na sala de espera, o programa matinal da Ana Maria falando quase sozinho de tão alto que está a TV na parede, um zumbido para minha enxaqueca pós-impeachment.  Olho para as cadeiras de estofado azul, as pessoas com suas fichas e carteirinhas em mãos, claro, com seus smartphones tb e ninguém lê nem sequer a revista Veja (ainda bem) e de repente penso identificar outro iniciado ou melhor dito outro remanescente desta arte perdida de virar páginas e anotar nas margens, está parado com um livro azul em baixo do braço.  Mas quando tento lançar para ele meu mais aperfeiçoado olhar de cúmplice, ele gruda mais a vista na TV, na história que estão contando sobre Paulinho que perdeu a perna por causa de um câncer.  Contudo - é a voz da Ana que nos afirma - o Paulinho não se deixou derrotar, pois ele tem cérebro de vencedor.  Sempre teve.  A mãe, a professora, o velho coach de natação dele, todos nos confirmam, com detalhadas evidências.  E ele venceu. Todos podemos ter  cérebro de vencedor. É a especialista que repete, cheia de dicas:  o quê comer, a importância de correr ou andar de bici pelo menos três vezes por semana - e daí vem o mais importante -  the clincher! - que era algo assim como nunca deixar de acreditar em você mesmo e também um tanto nos outros, como o próprio Paulinho com a namorada que sempre o aceitou, no antes e no depois.  A Carolina.  Uma bela ragazza, para um belo rapaz com uma falta perdoável.  Volto para a Denise, mestra em mostrar como todas as perdas geram duas perspectivas possíveis: a do lamento puro, e a 'sempre pode ser pior', principalmente se a gente se comparar com os mais fodidos.  É a Denise que, neste tempos de pão e circo, e circo e circo e circo , vai e volta entre o marido perdido e as fábricas da Barbie nas Filipinas, as trabalhadoras magras e sobrininhas loiras, sempre elevando o nível do que me faz rir.  Do alto da parede, continuam mostrando o Paulinho, e tudo o que apreendeu a fazer com sua falta.  Até que de pronto, vem minha vez: estender o braço, fechar o punho, deixar a agulha fina desenterrar a veia que se esconde.  Os tantos tubos que vão se enchendo do produto do meu corpo-fábrica.  Vermelho.  Lindo.  Na saída, pego meu café cortesia da casa, a chave do carro, o livro.  Minha veia pulsa, uma leve dor de excesso contra uma artéria fina.  Prometo-me que vou me cuidar e que vai ser cada vez melhor: menos glúten, menos lactose, menos horas de insônia ou de roer as unhas pelo que não posso saber ou não posso ganhar.  Brinco, ando a passos confiantes, pela cor que vi, as páginas que li, como se com isso eu pudesse tudo:  contra as faltas, as perdas,  contra tudo aquilo que me reduz a mera  condição de quem a pesar de todas as dicas conselhos horas de biblioteca pode de repente se ver em apertos, perder o rumo ou simplesmente não mais saber discernir, o que é  para lembrar, o que não é para esquecer.

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