Laboratório.
Nada como uma boa companhia. Desta vez é o livro Blowout da Denise no meu colo na sala de espera, o programa matinal da Ana Maria falando quase sozinho de tão alto que está a TV na parede, um zumbido para minha enxaqueca pós-impeachment. Olho para as cadeiras de estofado azul, as pessoas com suas fichas e carteirinhas em mãos, claro, com seus smartphones tb e ninguém lê nem sequer a revista Veja (ainda bem) e de repente penso identificar outro iniciado ou melhor dito outro remanescente desta arte perdida de virar páginas e anotar nas margens, está parado com um livro azul em baixo do braço. Mas quando tento lançar para ele meu mais aperfeiçoado olhar de cúmplice, ele gruda mais a vista na TV, na história que estão contando sobre Paulinho que perdeu a perna por causa de um câncer. Contudo - é a voz da Ana que nos afirma - o Paulinho não se deixou derrotar, pois ele tem cérebro de vencedor. Sempre teve. A mãe, a professora, o velho coach de natação dele, todos nos confirmam, com detalhadas evidências. E ele venceu. Todos podemos ter cérebro de vencedor. É a especialista que repete, cheia de dicas: o quê comer, a importância de correr ou andar de bici pelo menos três vezes por semana - e daí vem o mais importante - the clincher! - que era algo assim como nunca deixar de acreditar em você mesmo e também um tanto nos outros, como o próprio Paulinho com a namorada que sempre o aceitou, no antes e no depois. A Carolina. Uma bela ragazza, para um belo rapaz com uma falta perdoável. Volto para a Denise, mestra em mostrar como todas as perdas geram duas perspectivas possíveis: a do lamento puro, e a 'sempre pode ser pior', principalmente se a gente se comparar com os mais fodidos. É a Denise que, neste tempos de pão e circo, e circo e circo e circo , vai e volta entre o marido perdido e as fábricas da Barbie nas Filipinas, as trabalhadoras magras e sobrininhas loiras, sempre elevando o nível do que me faz rir. Do alto da parede, continuam mostrando o Paulinho, e tudo o que apreendeu a fazer com sua falta. Até que de pronto, vem minha vez: estender o braço, fechar o punho, deixar a agulha fina desenterrar a veia que se esconde. Os tantos tubos que vão se enchendo do produto do meu corpo-fábrica. Vermelho. Lindo. Na saída, pego meu café cortesia da casa, a chave do carro, o livro. Minha veia pulsa, uma leve dor de excesso contra uma artéria fina. Prometo-me que vou me cuidar e que vai ser cada vez melhor: menos glúten, menos lactose, menos horas de insônia ou de roer as unhas pelo que não posso saber ou não posso ganhar. Brinco, ando a passos confiantes, pela cor que vi, as páginas que li, como se com isso eu pudesse tudo: contra as faltas, as perdas, contra tudo aquilo que me reduz a mera condição de quem a pesar de todas as dicas conselhos horas de biblioteca pode de repente se ver em apertos, perder o rumo ou simplesmente não mais saber discernir, o que é para lembrar, o que não é para esquecer.