quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Sandra Cisneros em espanhol

Para complementar a tarefa iniciada - tradução e divulgação do trabalho poético de Sandra Cisneros - me ocorreu postar um poema escrito por ela em castelhano. Inclusive porque vai ao encontro com uma proposta inicial do blog - de promover o trânsito literário entre três línguas. Será então a primeira postagem em espanhol, de uma escritora cuja obra principal está em inglês, mas que se permite, de vez em quando, a celebração linguística de suas origens mexicanas.


Tantas Cosas asustan, Tantas
[do livro: My Wicked Wicked Ways ]

Tantas cosas asustan. Tantas.
Los muertos y los vivos.

Lo que la oscuridad no nos permite ver
y lo que nos permite.

Pasos sobre un patio
tanto como el silencio.

Y cosas simples.
Aritmética. La renta.

El infinito también asusta.
Números. El cielo.
Dioses que siempre fueron y serán.
La imortalidad.

Qual es peor?
Estar siempre sola,
o estar con alguien para siempre.

Y el finito aterroriza.
Nuestras vidas por ejemplo.

El amor asusta.
Igual la luna y los generales.
Y pesan mucho.

No uno por uno.
Pero todos juntos.
Como una lata de canicas.

La felicidad, al contrario,
es otro asunto.
Tiene que ver con papalotes.




Segundo ele... (nova tradução)

Eis aqui uma nova tradução nossa, da obra da poeta e escritora chicana, Sandra Cisneros*. O título original do poema é His Story [do livro My Wicked Wicked Ways, Third Woman Press, 1987].


Segundo ele ...


Nasci sob uma estrela maliciosa.
Assim diz meu pai.
Isso talvez explique sua pena.

Uma filha única,
que ninguém vinha buscar
e nem ao menos afastar.

É um destino antigo.
Um traço de família vindo
De uma tia avó imencionável.

Seu pecado era a beleza.
Viveu como amante
E morreu solitária.

Houve também
uma prima com a famosa
como posso dizer isso?...
profissão.

Ela fugiu com um coronel,
e logo após:
com a folha de pagamento do
exército.

E, é claro,
A mãe de vovó,
Que morreu de feitiço.
Há outras.

Por exemplo,
meu pai explica,
nos jornais mexicanos,
uma garota com meus dois nomes
foi presa por crimes audaciosos
que tiveram início
com a desobediência ao pai.

E também, e aqui ele para,
o cubano que lhe vende sapatos
diz que ele também conheceu uma
Sandra Cisneros
que foi três vezes uma viúva
amaldiçoada.

Você vê,
destino azarado é o meu,
nascida em uma família de homens.

Seis filhos, geme meu pai,
todos em casa,
e uma fêmea,
que partiu.

versão: Claudia Borio e Miriam Adelman

* veja minha postagem de 19/01/09 sobre Cisneros e sua obra.
Ou acesse minha tradução dela, através do link: sibila.com.br/poemas52mexicanomim.html

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Novo poema, nova tradução

Um poema que escrevi hoje, em inglês, e em seguida traduzi. Acho que ficou melhor em português...será?

Fábula

He wanted to have it all:
the round baskets of plenty,
smooth-legged women, a daughter’s
trust. To drink from the river
always where the water was
sweet and fresh. To give
openly his warmth
wherever and whenever
he wanted.
To hurt no one?

There were girls
waiting at every bend
in the river
with flowers, with shining
teeth.
No time to waste.
No reason to linger too long
in any grove.
Tomorrow would always come again:
a red sun, the darkened hollow
of the heart.


Fábula

Ele queria tudo:
as redondas cestas da abundância.
as mulheres de pernas macias, a confiança
de uma filha. Beber sempre
no lugar onde a água era mais
fresca, mais doce. Dar livremente
seu calor, em qualquer lugar
a qualquer hora.
Não magoar ninguém?

Havia garotas
esperando em cada curva
do rio, esperando com flores,
com dentes que brilhavam.
Não havia tempo a perder.
Nem motivos para vacilar
muito tempo em algum
arvoredo.
O amanhã sempre viria:
um sol vermelho,
a escurecida cova
do coração.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Poetry, the unpredictable –Diane Wakoski.

Eis aqui uma nova tradução, em primeira versão (ainda sem revisar). Gostei muito do poema -- mais simples, mais "na brincadeira" talvez. O que de vez em quando faz falta...

A poesia, a imprevisível.

Você me faz perguntas
que eu posso responder.
Não me satisfazem,
como os pacotes de semente que descansam
sobre minha mesa:
a pimenta doce da Califórnia ou o aneto gigante,
sementes que talvez nem plante, e que com certeza
tem poucas chances de prosperar na casa de
alguém que viaja, planta sementes em vasos para depois
deixar os vasos para outros cuidarem.

Meu dedo verde me excita
porque não há resposta para a pergunta de
por que algumas coisas crescem enquanto outras
não-
e minhas aulas de botânica nunca me ensinaram por que algumas plantas
têm botão e
outras não.

Vejo só que as rosas me excitam
e outras coisas vivas.
E o oceano atrás da minha porta,
do outro lado das janelas,
nestes dedos;
é este o ruído.
Eu o amo/mas de noite intimida

O desconhecido,
O misterioso,
Aqueles de nós que precisamos saber tudo
descobrimos que quanto mais conhecemos,
mais o que não conhecemos
nos excita.

A poesia?
Com certeza o mais imprevisível?
Como as rosas do proprietário
desta casa, as que as minhocas
não devoraram.


(versão: Miriam Adelman)

domingo, 15 de fevereiro de 2009

O tempo passa, o quê acontece com os objetos/sujeitos do desejo?

[Após participação num programa de rádio e depois, uma tarde de papo com @s amig@s em que voltamos mais uma vez ao tema...]

Entre “nós da academia” virou quase clichê a afirmação que o sujeito se produz nos (através dos) discursos. Não que todo mundo concorde. Afinal, as velhas discussões entre “materialistas” e “culturalistas” continuam e todos nós também sabemos muito bem que na nossa área os debates nunca se resolvem. Muito pelo contrário, se repetem, se re-significam, encenando novas e antigas dimensões - fonte de persistente ansiedade para os que querem encaixá-los noutro modelo de “cientificidade”.

Não muito distante destas discussões, ou melhor dito, parte delas, é como “os corpos se constroem discursivamente.” Concretizando um pouco: no meu próprio trabalho venho discutindo diversos discursos sobre corporalidade feminina - as formas de falar e pensar sobre o corpo e sua relação com práticas que nos tornam mais competentes, ou mais inseguras, mais “empoderadas” ou mais obcecadas (apenas?) com as belas formas...

Na poesia de Diane Wakoski, está sempre presente esse corpo/sujeito feminino construído, constrangido, emergido da cultura, do nosso tempo/momento. Por vezes, tratado com muita auto-ironização, e sem nenhum receio de mostrar-se em constante conflito com os modelos de feminilidade que tormentam e atraem. Em conflito com os códigos que nos validam socialmente como seres que podem ser desejados por outros. Códigos que têm um impacto enorme sobre nossa subjetividade, pelo poder que têm de nos frustrar como sujeitos do desejo...
,
Pensemos por exemplo um pouco sobre os discursos que circulam sobre as mulheres (e os homens) na meia idade. Num filme recente, Fatal – baseado no romance O Animal Agonizante do renomado escritor norteamericano Phillip Roth - resgata-se mais uma vez o “direito natural” dos homens velhos sobre as mulheres mais novas, através de uma curiosa estratégia narrativa: após longos questionamentos sobre a “sustentabilidade” ou validade da relação entre a jovem e seu muito mais velho professor, a jovem apaixonada perde o poder ou vantagem outorgada por sua juventude perante o amante quando desenvolve câncer no seio (a mutilação do seu corpo que resultará da cirurgia a vulnerabilizará, sugerindo a destruição da sua perfeição juvenil ao mesmo tempo que legitima a proteção que o macho lhe dará!) O que me fez lembrar de um outro filme, que assisti uma vez numa viagem de ônibus para Florianópolis, Stepmom - produção hollywoodiana comum, mas protagonizada pela maravilhosa Susan Sarandon que contracena com a "queridinha" Julia Roberts. História do conflito entre as 2 mulheres - a ex-esposa e mãe dos filhos, e uma nova, jovem e linda fotógrafa, atual namorada do ex-marido - que gira em torno de disputa por uma posição na família, o papel materno –, nos traz mais uma vez de volta à naturalização do direito dos homens mais velhos, seu "privilégio" de viver a vida como o desfile de fêmeas sempre renovadas, como descarte das mais velhas. Curiosamente (?), a doença é neste filme também a “estratégia narrativa” utilizada para naturalizar esta sucessão de mulheres (e de afirmar, entre outras coisas a superioridade do corpo masculino, ainda “forte e desejante”), pois a personagem de Susan Sarandon morre de câncer. E finalmente, lembrei de um romance de Milan Kundera, que li anos atrás, Imortalidade no qual a protagonista, uma bela e inteligente cinquentona – que um dia andando pela praia tem a percepção resignada que os homens não mais olham para ela e ao longo da história vai perdendo a vontade de continuar vivendo, acabando morta em acidente de estrada – vai no mesmo sentido. Mulheres mais velhas que “não servem mais” para agradar os olhos dos seus antigos parceiros, e cujos filhos não mais precisam delas! Como no ditado popular “Deixa a fila andar”!!??

Sei que há outras “construções discursivas”... bem minoritárias ainda, ou que não circulam muito pelos circuitos da cultura de massas ( a não ser nas formas diluídas e ambíguas de certas celebridades brasileiras -- ah, qual a nossa dívida com Susana Viera!?) Há, como escrevi noutro lugar*, a dignidade e sabedoria das personagens femininas mais velhas criadas por Virginia Woolf, entre elas Clarissa Dalloway (Mrs. Dalloway) e Mrs. Ramsey (Ao Farol) Também por isso estou gostando do trabalhar com a poesia de Diane. Uma voz que me parece genial. Pelo sarcasmo e a compaixão, ou bem, pela coragem de se expor, e com sua mistura particular de senso de humor e raiva, de ternura e contestação, de se afirmar como sujeito e objeto do desejo. De reivindicar poeticamente e ironicamente esse direito que todas temos, ao longo de nossas vidas, de sermos admiradas e valorizadas pelo fazemos – com as mãos, ccom a mente, com o coração, com o corpo.

* no prelo, artigo "Modernidade e pós-modernidade em vozes femininas"

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Aprendendo com as "mestras"...

Bom, enquanto Sabrina e eu vamos preparando novas traduções, publico mais um poema meu. Escrito numa época de intensa convivência com a obra de Diane.



Desert II


The numbers in my head are screaming.
The long list of severed names, the places
where the glinting train came to its
lurching halt. The blue lights
of a desert highway where angels
are spawned, where iguanas
blink and scuttle off into the
night. Some end of the road
Bagdad Café, some Last Chance
Texaco where you found her:
the one who made you forget me
again. A dancer perhaps. A
little one with a yellow spin of hair
who plays a shiny silver flute.
the eastern sounds floating out
into your tiny emerald oasis.
She doesn´t partake of the pomegranates.
the big chunks of crusty bread. Doesn´t
laugh loudly. Flutters in your life
like a wish, wispy, tantalizing. The
tatooed wrists, the small
bangled feet making no sound.

(miriam, 2007)

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Diane, traduzida.

Aqui Sabrina Lopes e eu apresentamos nossa nova parceria, traduzindo o poema de Diane Wakoski que aparece em baixo, em postagem anterior, em inglês. O fôllego inicial é da Sabrina, eu entro como colaboradora. E aceitamos sugestões!


A sacerdotisa Medeia

Diane Wakoski

Ela está na Casa da Mãe Solteira em Pasadena,
a única menina que lê poesia. Ele escreve pra ela
do internato, ela decora os sonetos de Shakespeare
enquanto se exercita
no pátio poeirento
da Casa.


Magia alguma muda sua vida.
Ela ouve da Assistente Social que
ERROU porque
ainda ama J
não se arrepende de nada que fez por amor
não acredita que é má
não se culpa por desistir do bebê
crê que a vida seguirá seu percurso, assim como
sempre seguiu
não vai falar sobre seus erros.


É o mesmo que estar no deserto,
a vidinha na sala com chão de linóleo,
comendo com garotas estupradas pelo pai,
e garotas que foram pegas, mas ninguém sabe com quem,
e garotas de só 13 anos
e garotas que eram enfermeiras dormindo com doutores
e garotas que queriam esquecer de tudo e entrar pro exército,
garotas todas grávidas e envergonhadas e que sabiam estar vagando por algum deserto, mesmo que a maioria delas,
a maioria de nós, não soubesse
o nome das serpentes do deserto, nem de mariposas como a Dusty
Silverwing, nem
sobre as tocas estreitas das corujas, ou o aroma persistente da artemísia,
quando a noite estava limpa, limpa como a gente sabia que ainda era.


Então, se ela fosse Medeia, quando as cartas dele chegassem
falando como quem não quer nada de encontros com outras garotas, garotas
que não estavam grávidas,
decidiria que não resta mais escolha. Ela
o mataria, e mataria os filhos, e igual à Sacerdotisa
partiria para outro mundo, em sua carruagem tocada por dragões.


Ela desistiu do bebê. Sem remorso. Só os fracos têm
remorsos. Ela voou em sua carruagem com todo seu poder de dragona para Berkeley,
daí Nova York, então o Meio-Oeste, e finalmente esse Café
onde senta contando a lenda, não da tribo,
mas dela mesma, e a despeito do que os outros dizem, ela sabe
que a canção, que essa Lua Prateada da Irrequieta Dama da
Luz do Dragão canta,
é a lenda de pelo menos metade
da tribo.


Toque seu instrumento, Pistoleiro.
Aclame, Maximus.
Ascensão é queda, Dr. Paterson,
Oh, Amor, poeta caolho, aonde me leva agora? Ninguém
deveria
Estar na Casa da Mãe Solteira. Verdadeira Terra
Desolada.
Essas cartas, que não são cantos, que não são canções, vão para o Craig,
Cavaleiro da Luz do Colibri,
pro Jonathan que entende o mito da mulher que
"Dorme nas
Chamas"
Para o Homem de Aço, meu marido, que me ama nas noites em sua
invisível Capa
de Escuridão,
e para todas as mulheres, a outra metade da tribo,
pra Eva que se atreveu comer a maçã, eu escrevo essa carta
e eu também assino

Diane

A Dama da Luz.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Naumaquia, um conto de Benedito Costa Neto

[Um conto que foi premiado no último concurso Newton Sampaio. É, nas palavras do autor, "uma narrativa sobre o amor paterno". Será publicado na próxima edição do concurso, com outros oito contos de escritores brasileiros.]

Ele viajou, estudou em Londres, passou por diversos países, depois voltou com um piercing atravessando a orelha, palavras estranhas para apontar as coisas mais comuns e um namorado. Quando chegou, não entendi muito bem a figura sempre presente do amigo. Um rapaz de ombros largos, ex-praticante de remo,arquiteto formado por uma federal. Eu não disse nada, e fingia não entender as indiretas de minha mulher e também as diretas dela: você não vê o óbvio, você não enxerga um palmo frente a seu nariz, você só vê o que quer ver, etc. Mas ela me dizia isso a respeito de carros, do meu orgulho pela seleção de vôlei, da política. Era algo que se perdia num lodaçal de coisas ditas, que ao longo do casamento se transformam num mantra e, como num mantra muito repetido, perdiam (e perdem) o sentido. Esperava que um dia meu filho aparecesse em casa com uma menina, tão linda que eu diria a ele: vou trocar sua mãe por sua namorada, muito mais jovem, você que arrume outra, essas coisas de que todos ririam, e eu levaria um beliscão... afinal não criei meu filho de outra forma que não fosse a única possível que era criar um garoto para que um dia esse garoto gostasse de uma garota que viria à minha casa e me chamaria de sogrinho querido, algo assim, mas aqui paro para ouvir a voz do Rodrigo, o amigo de tantos anos: o mundo mudou e todos estão enlouquecidos. O rapaz apertou minha mão com tanta força e por tanto tempo – mostrando um interesse tão vívido pelo pai do amigo, dizendo que ouvira muito falar de mim – que tive de pedir minha mão de volta. Disse que era um orgulho estar na casa de um ex-nadador que fora a Los Angeles e que a casa era realmente mais bonita do que a descrição que tivera. Meu filho fora injusto com o pai. Não as via, mas sabia que as mulheres estavam rindo atrás de mim. Minha filha deu um abraço no rapaz e depois um tapinha nas costas do irmão, dizendo aí, rapaz! ponto pra você! De fato o mundo mudara e as pessoas estavam enlouquecidas, trocando as falas. Os dias foram passando e a presença do rapaz foi ficando mais e mais intensa. Aniversários, almoços, jantares, troca de receitas com as mulheres, conversas amenas sobre política e economia comigo, longas apresentações de fotos de viagens. A cada dia convivíamos mais e mais com o poder esmagador de seu sorriso. Chegou também o dia em que as famílias se conheceriam. O rapaz forte, sem pai, trouxe a mãe e uma irmã tímida, cheia de dedos. Eram pessoas muito distintas e fiquei encantado com o modo como a mãe dele contou como criara os filhos sozinha, principalmente a alegria dela ao ver o filho na equipe de remo e a tristeza pela equipe não ter conseguido ir a Atenas. Falava do filho como tratasse de um herói morto havia muito, mas com que dedicação! Era uma mulher mais bonita que a minha, tivera uma vida mais dura que a nossa, jamais se casara de novo e, com tudo isso, mantinha uma classe antiga, que não se compra em antiquários. Jantar finalizado, cafezinho, o licor que recusaram, conversa na sala que dava para o jardim. Horas depois de a mãe dele haver chegado,após quase duas horas de conversa, estava chorando, do nada, sem parar e com ritmo, por todas as coisas, como diria Guimarães Rosa, pelas coisas vividas e pelas que viriam. Não sei, mas acho que entendia seu choro assim como entendi o abraço carinhoso que ela recebeu de minha esposa: naquele momento elas estavam em consonância e talvez se emocionassem por coisas parecidas. O filho foi ao toalete, trouxe papel dobrado, estendeu-o à mãe, fez um gesto querendo dizer é assim mesmo, ela fica emocionada com qualquer coisa, é uma manteiga derretida, e foram. Meu filho os acompanhou e, como nunca tinha sentido antes,nem em sua despedida para a Inglaterra, anos antes, nem quando foi ao hospitalaos quatorze, quase morto por uma queda do cavalo, jamais em minha vida sentira tão forte uma perda. Esperei as mulheres todas saírem, acompanharem as visitas até o carro delas, e caí no sofá, esperando o sinal da imensa platéia que assistira minha derrota: elas apontariam com o polegar o próprio pescoço para que o outro gladiador me desse o golpe de misericórdia. No clube, comentei com os amigos mais próximos que em meu escritor predileto, Guimarães Rosa, isso tudo seria impossível, ao que fui abertamente recriminado, de novo: eu só via o que queria. Mas Diadorim era uma mulher, eu disse, uma donzela guerreira! Terminei a conversa dizendo que isso jamais haveria em Machado, ao que fui recriminado de novo: vai que Bentinho fosse apaixonado por Escobar! E o que dizer de Proust? Na verdade, queriam me chatear, mas a zombaria dos amigos é um bom vinho: só não mata a sede. O pior sempre foram as piadinhas sobre quem ficava por cima. Evidentemente sempre defendi meu filho, mas quando, no clube, vêem os ombros intermináveis de remador do outro, sobram ironias ou um certo olhar de espanto. Fui a Londres, dia desses, para uma reunião anual com gerentes do mundo todo. Foram dias aborrecidos e solitários.Saí à pé, muitas vezes, olhando os prédios, as ruas, o que mudara em tantos anos – conheci a cidade nos anos 80 – e procurei pelo que teria mudado a vida de meu filho. Vi indianos, gente branca e sem graça, vi os museus, as ruas, os novos ônibus, mas nada que me explicasse algo. Tomei listas, peguei em bares flyers de festas jovens, passei por lugares da moda, mas nada achei. Foi boa a viagem, perguntou minha mulher, ao que respondi: não muito. Londres está tão diferente! Encontrei com os dois no supermercado, meu carrinho cheio, o deles cheio, dois casais a tentar encher uma despensa, um buraco negro, para todo o sempre, dois casais que tentam uma vida em comum. Enquanto a mãe conversava com o filho sobre a nova programação da Sony, passei a observar o que havia no carrinho do meu filho que não havia no meu. Massas, alguns congelados, óleo,verduras, tudo muito parecido, tudo igual na verdade, coisas de comer, entre o que faz bem e o que engorda, coisas que qualquer nutricionista condena ecoisas que vibraria ao ver. Gosta disso? Perguntou o outro. É um tempero meio oriental, mas um pouco forte, ele disse. Se quiser experimentar, fazemos um prato pra você, bem especial, que aprendemos em Amsterdã. Amsterdã, então,devia guardar os segredos que eu não encontrara em Londres. Não, não quero não, eu não gosto muito dessas coisas... modernas. Pai, não tem nada de moderno numa coisa que usam na Indonésia há séculos!, disse meu filho. Mas por insistência da mãe foi marcado um jantar, o primeiro jantar na casa do meu filho agora casado, sem mulher ou uma gravidez para me alegrar. De novo no clube – e a família dele era sócia desde a fundação, ou seja, bem mais importante que a nossa, ele mostrou orgulhoso a placa de sócios fundadores como nome do bisavô – fiquei com vergonha pela primeira vez na frente de meu filho. Ensinara uma criança a nadar, ficara ao lado dela, olhava-a o tempo todo com medo de afogamento, creio que dei muitas vidas a meu filho, como se a medida que fosse envelhecendo passasse para ele a vida que se esvaía de mim.Nunca então tivera receio de ficar nu diante dele, talvez como uma forma de ele conhecer o universo masculino, os tesouros e segredos da vida íntima do homem, tão menos cantada na poesia mas tão fantástica, tão de homem, esse poder que se mostra indiferentemente a nós quando menos queremos, esse poder de jagunços e gladiadores, de reis militares e de astronautas, de atletas ede... Aí fiquei envergonhado. Senti-me velho e pequeno, principalmente diante dos corpos jovens e brancos, depilados como uma escultura. Pela primeira vez em décadas, usei o banheiro fechado, aquele mesmo que era alvo das gozações mais esdrúxulas. Por que alguém teria vergonha de sua nudez? Mas o rapaz era meio assim, um guerreiro e passei a lastimar o fracasso de Atenas. Voltamos sem medalhas de Los Angeles, mas fomos. O rapaz trabalhava loucamente, amava oque fazia, cuidava da mãe chorona, retribuía com um sorriso a carranca da vida. Na casa deles, pedi para fumar um cigarro lá fora. Quer companhia, me perguntaram. Tinham sido bem criados esses meninos, gentis e cavalheiros, com as damas e com os senhores. Disse que não e que ficassem à vontade para tirara mesa, porque, eu disse, isso não era serviço para homem, ao que fui repreendido suavemente pela minha mulher: eu sou a única mulher aqui, então vou ter que fazer isso sozinha! Foram lá os três cuidar da arrumação. Andei pelo jardim, um misto de jardim brasileiro, cheio de curvas, ao gosto de Burle Marx, com detalhes orientais. Uma raia comprida ao longo do muro, para praticarem natação, uma bica nada singela, horizontal, com água perene, ao fundo, luzes estratégicas. Havia uma quaresmeira no fim do terreno, alta e linda, bem mais antiga que a casa, preservada com todo o cuidado. Estava florida e chegara ao máximo que uma árvore dessas pode atingir. De repente o cigarro me pareceu inadequado, pois parecia que eu estava profanando um templo. Gosta? – ouvi. Era meu filho. Fiz questão de preservar, disse ele. Ela me lembra muito a infância e morro de saudade da casa da vovó, dos cavalos, das suas desajeitadas aulas de equitação. Esta árvore é sua presença na minha casa, pai, de um modo ou de outro. E cadê sua mãe, perguntei eu. Não conte pra ela, ele disse, acho que a presença dela está na desarrumação da cozinha, nada muito glamouroso. Um jardim tão cuidado e uma cozinha bagunçada, não é estranho? Há tantas coisas estranhas. O jardim foi todo projetado, mas em função da quaresmeira. Ela, por assim dizer, deu vida a ele. Olhei para a árvore, depois para meu filho, mas eu estava sozinho. Voltei para a sala,sentei no sofá assinado e passei a entender a razão de terem me presenteado com o livro cujo título era O sentido da beleza.