terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Naumaquia, um conto de Benedito Costa Neto

[Um conto que foi premiado no último concurso Newton Sampaio. É, nas palavras do autor, "uma narrativa sobre o amor paterno". Será publicado na próxima edição do concurso, com outros oito contos de escritores brasileiros.]

Ele viajou, estudou em Londres, passou por diversos países, depois voltou com um piercing atravessando a orelha, palavras estranhas para apontar as coisas mais comuns e um namorado. Quando chegou, não entendi muito bem a figura sempre presente do amigo. Um rapaz de ombros largos, ex-praticante de remo,arquiteto formado por uma federal. Eu não disse nada, e fingia não entender as indiretas de minha mulher e também as diretas dela: você não vê o óbvio, você não enxerga um palmo frente a seu nariz, você só vê o que quer ver, etc. Mas ela me dizia isso a respeito de carros, do meu orgulho pela seleção de vôlei, da política. Era algo que se perdia num lodaçal de coisas ditas, que ao longo do casamento se transformam num mantra e, como num mantra muito repetido, perdiam (e perdem) o sentido. Esperava que um dia meu filho aparecesse em casa com uma menina, tão linda que eu diria a ele: vou trocar sua mãe por sua namorada, muito mais jovem, você que arrume outra, essas coisas de que todos ririam, e eu levaria um beliscão... afinal não criei meu filho de outra forma que não fosse a única possível que era criar um garoto para que um dia esse garoto gostasse de uma garota que viria à minha casa e me chamaria de sogrinho querido, algo assim, mas aqui paro para ouvir a voz do Rodrigo, o amigo de tantos anos: o mundo mudou e todos estão enlouquecidos. O rapaz apertou minha mão com tanta força e por tanto tempo – mostrando um interesse tão vívido pelo pai do amigo, dizendo que ouvira muito falar de mim – que tive de pedir minha mão de volta. Disse que era um orgulho estar na casa de um ex-nadador que fora a Los Angeles e que a casa era realmente mais bonita do que a descrição que tivera. Meu filho fora injusto com o pai. Não as via, mas sabia que as mulheres estavam rindo atrás de mim. Minha filha deu um abraço no rapaz e depois um tapinha nas costas do irmão, dizendo aí, rapaz! ponto pra você! De fato o mundo mudara e as pessoas estavam enlouquecidas, trocando as falas. Os dias foram passando e a presença do rapaz foi ficando mais e mais intensa. Aniversários, almoços, jantares, troca de receitas com as mulheres, conversas amenas sobre política e economia comigo, longas apresentações de fotos de viagens. A cada dia convivíamos mais e mais com o poder esmagador de seu sorriso. Chegou também o dia em que as famílias se conheceriam. O rapaz forte, sem pai, trouxe a mãe e uma irmã tímida, cheia de dedos. Eram pessoas muito distintas e fiquei encantado com o modo como a mãe dele contou como criara os filhos sozinha, principalmente a alegria dela ao ver o filho na equipe de remo e a tristeza pela equipe não ter conseguido ir a Atenas. Falava do filho como tratasse de um herói morto havia muito, mas com que dedicação! Era uma mulher mais bonita que a minha, tivera uma vida mais dura que a nossa, jamais se casara de novo e, com tudo isso, mantinha uma classe antiga, que não se compra em antiquários. Jantar finalizado, cafezinho, o licor que recusaram, conversa na sala que dava para o jardim. Horas depois de a mãe dele haver chegado,após quase duas horas de conversa, estava chorando, do nada, sem parar e com ritmo, por todas as coisas, como diria Guimarães Rosa, pelas coisas vividas e pelas que viriam. Não sei, mas acho que entendia seu choro assim como entendi o abraço carinhoso que ela recebeu de minha esposa: naquele momento elas estavam em consonância e talvez se emocionassem por coisas parecidas. O filho foi ao toalete, trouxe papel dobrado, estendeu-o à mãe, fez um gesto querendo dizer é assim mesmo, ela fica emocionada com qualquer coisa, é uma manteiga derretida, e foram. Meu filho os acompanhou e, como nunca tinha sentido antes,nem em sua despedida para a Inglaterra, anos antes, nem quando foi ao hospitalaos quatorze, quase morto por uma queda do cavalo, jamais em minha vida sentira tão forte uma perda. Esperei as mulheres todas saírem, acompanharem as visitas até o carro delas, e caí no sofá, esperando o sinal da imensa platéia que assistira minha derrota: elas apontariam com o polegar o próprio pescoço para que o outro gladiador me desse o golpe de misericórdia. No clube, comentei com os amigos mais próximos que em meu escritor predileto, Guimarães Rosa, isso tudo seria impossível, ao que fui abertamente recriminado, de novo: eu só via o que queria. Mas Diadorim era uma mulher, eu disse, uma donzela guerreira! Terminei a conversa dizendo que isso jamais haveria em Machado, ao que fui recriminado de novo: vai que Bentinho fosse apaixonado por Escobar! E o que dizer de Proust? Na verdade, queriam me chatear, mas a zombaria dos amigos é um bom vinho: só não mata a sede. O pior sempre foram as piadinhas sobre quem ficava por cima. Evidentemente sempre defendi meu filho, mas quando, no clube, vêem os ombros intermináveis de remador do outro, sobram ironias ou um certo olhar de espanto. Fui a Londres, dia desses, para uma reunião anual com gerentes do mundo todo. Foram dias aborrecidos e solitários.Saí à pé, muitas vezes, olhando os prédios, as ruas, o que mudara em tantos anos – conheci a cidade nos anos 80 – e procurei pelo que teria mudado a vida de meu filho. Vi indianos, gente branca e sem graça, vi os museus, as ruas, os novos ônibus, mas nada que me explicasse algo. Tomei listas, peguei em bares flyers de festas jovens, passei por lugares da moda, mas nada achei. Foi boa a viagem, perguntou minha mulher, ao que respondi: não muito. Londres está tão diferente! Encontrei com os dois no supermercado, meu carrinho cheio, o deles cheio, dois casais a tentar encher uma despensa, um buraco negro, para todo o sempre, dois casais que tentam uma vida em comum. Enquanto a mãe conversava com o filho sobre a nova programação da Sony, passei a observar o que havia no carrinho do meu filho que não havia no meu. Massas, alguns congelados, óleo,verduras, tudo muito parecido, tudo igual na verdade, coisas de comer, entre o que faz bem e o que engorda, coisas que qualquer nutricionista condena ecoisas que vibraria ao ver. Gosta disso? Perguntou o outro. É um tempero meio oriental, mas um pouco forte, ele disse. Se quiser experimentar, fazemos um prato pra você, bem especial, que aprendemos em Amsterdã. Amsterdã, então,devia guardar os segredos que eu não encontrara em Londres. Não, não quero não, eu não gosto muito dessas coisas... modernas. Pai, não tem nada de moderno numa coisa que usam na Indonésia há séculos!, disse meu filho. Mas por insistência da mãe foi marcado um jantar, o primeiro jantar na casa do meu filho agora casado, sem mulher ou uma gravidez para me alegrar. De novo no clube – e a família dele era sócia desde a fundação, ou seja, bem mais importante que a nossa, ele mostrou orgulhoso a placa de sócios fundadores como nome do bisavô – fiquei com vergonha pela primeira vez na frente de meu filho. Ensinara uma criança a nadar, ficara ao lado dela, olhava-a o tempo todo com medo de afogamento, creio que dei muitas vidas a meu filho, como se a medida que fosse envelhecendo passasse para ele a vida que se esvaía de mim.Nunca então tivera receio de ficar nu diante dele, talvez como uma forma de ele conhecer o universo masculino, os tesouros e segredos da vida íntima do homem, tão menos cantada na poesia mas tão fantástica, tão de homem, esse poder que se mostra indiferentemente a nós quando menos queremos, esse poder de jagunços e gladiadores, de reis militares e de astronautas, de atletas ede... Aí fiquei envergonhado. Senti-me velho e pequeno, principalmente diante dos corpos jovens e brancos, depilados como uma escultura. Pela primeira vez em décadas, usei o banheiro fechado, aquele mesmo que era alvo das gozações mais esdrúxulas. Por que alguém teria vergonha de sua nudez? Mas o rapaz era meio assim, um guerreiro e passei a lastimar o fracasso de Atenas. Voltamos sem medalhas de Los Angeles, mas fomos. O rapaz trabalhava loucamente, amava oque fazia, cuidava da mãe chorona, retribuía com um sorriso a carranca da vida. Na casa deles, pedi para fumar um cigarro lá fora. Quer companhia, me perguntaram. Tinham sido bem criados esses meninos, gentis e cavalheiros, com as damas e com os senhores. Disse que não e que ficassem à vontade para tirara mesa, porque, eu disse, isso não era serviço para homem, ao que fui repreendido suavemente pela minha mulher: eu sou a única mulher aqui, então vou ter que fazer isso sozinha! Foram lá os três cuidar da arrumação. Andei pelo jardim, um misto de jardim brasileiro, cheio de curvas, ao gosto de Burle Marx, com detalhes orientais. Uma raia comprida ao longo do muro, para praticarem natação, uma bica nada singela, horizontal, com água perene, ao fundo, luzes estratégicas. Havia uma quaresmeira no fim do terreno, alta e linda, bem mais antiga que a casa, preservada com todo o cuidado. Estava florida e chegara ao máximo que uma árvore dessas pode atingir. De repente o cigarro me pareceu inadequado, pois parecia que eu estava profanando um templo. Gosta? – ouvi. Era meu filho. Fiz questão de preservar, disse ele. Ela me lembra muito a infância e morro de saudade da casa da vovó, dos cavalos, das suas desajeitadas aulas de equitação. Esta árvore é sua presença na minha casa, pai, de um modo ou de outro. E cadê sua mãe, perguntei eu. Não conte pra ela, ele disse, acho que a presença dela está na desarrumação da cozinha, nada muito glamouroso. Um jardim tão cuidado e uma cozinha bagunçada, não é estranho? Há tantas coisas estranhas. O jardim foi todo projetado, mas em função da quaresmeira. Ela, por assim dizer, deu vida a ele. Olhei para a árvore, depois para meu filho, mas eu estava sozinho. Voltei para a sala,sentei no sofá assinado e passei a entender a razão de terem me presenteado com o livro cujo título era O sentido da beleza.

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