quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Diane Wakoski, poeta.

[Aproveitando meu novo ofício de blogueira, que me estimula a escrever mais livremente – ter a coragem de fazê-lo!- e partilhar coisas como, neste caso, o gosto pessoal pela obra de uma poeta:]

Nascida na Califórnia, em 1937, de origem étnica polonesa e com raízes na classe trabalhadora, Wakoski é uma poeta muito prolífica, mas pouco conhecida por aqui. Inspirada por poetas norteamericanos como os grandes William Carlos Williams e Allen Ginsberg, e pese as ressalvas que ela diz ter de ser identificada como uma poeta “feminista” (“One of the reasons I have not been wanting to be called a feminist poet is that the label seems to lump all women writers together, as if we have a common message. I am not even sure that I have a message, but if I do, it is full of contradictions and paradoxes and perhaps even baffling” ), sua voz articula, à sua maneira – observando, sentindo, se permitindo todas as viagens possíveis, sem exigências de “coerência ideológica” - um olhar sobre a vida desde uma perspectiva de sujeito-mulher, crítica e pois... feminista!

Tenho quatro livros dela (pouco, pensando que ela já publicou mais de 40), cada um lido já várias vezes. Venho nestes dias relendo Medea the Sorceress (Black Sparrow Press, 1995), um trabalho que me parece genial. É composto por poemas, cartas e até pequenos extratos de um livro sobre física quântica (para acrescentar reflexões sobre várias questões : por exemplo, o que é o “real”, ou o caráter inseparável de corpo, matéria, pensamento e imaginação ...) Também neste livro ela aborda sua passagem para a “meia-idade” (Me identifico!). E prevalece nele uma linguagem quase cotidiana, mas metaforicamente rica e sempre casada com reflexões filosóficas; trata-se portanto de um cotidiano denso, onde cada coisa, por “banal” que pudesse ser, se carregue de denso significado existencial onde nos poderemos encontrar, com nossas problemáticas partilhadas. Emprega muita ironia, e embora pretenda muitas vezes ser forte ou enfática naquilo que coloca, conserva também uma atitude brincalhona.

Cativam-me as diversas metáforas (figuras, “tropos”) que ela desenvolve para significar seu próprio caminho pela vida, que não só se repetem ao longo do livro senão representam uma continuidade com livros anteriores. Esboço apenas algumas, muito sinteticamente:

Medea dos poderes mágicos: embora à procura do amor, encontra-se com a traição. Assim, se o desencontro e as expectativas (românticas, ridículas?) falidas caracterizam sua vida, desta surge a agência feminina - movida, principalmente, por ciúme, raiva e o desejo da vingança, é verdade E afinal, recupera para si um poder. Jason, quem a trai, significa, de diversas formas, todos os homens... ou quase todos.

A Carteira (“the Postmistress”). A portadora de cartas e mensagens (entre os ancestrais da poeta, há alguém que cavalgou o país pelo legendário Pony Express). Para esta personagem, a vida gira em torno da lógica da comunicação/conexão: o impulso de levar aos outros cartas e mensagens, de construir pontes com as palavras.

the Silver Surfer/Steel Man/King of Spain: as várias versões de suas fantasias erótico-amorosas.

O marinheiro, ou o pai: que na cultura patriarcal norteamericana, é livre no sentido de ir e vir em função de si mesmo, e de quem não se deve esperar... que volte!

A dama da luz/o arquiteto da luz: quem – mulher, homem, qualquer um , talvez uma forma de assumir os desafios existenciais?

Bom, por enquanto paro por aqui com minhas reflexões. Demorei muito para escolher um poema dela para partilhar com vocês. Decidi por este: poema perceptivelmente autobiográfico, muito forte. Publico aqui na versão original. [Pretendo em algum momento tentar traduzir algo da obra dela, mas os poemas costumam ser muito longos, com uma densidade e certas outras características que me dificultariam o caminho à produção de uma boa “versão” , percebo...Ou talvez alguém queira me ajudar! ].

MEDEA THE SORCERESS

She is in the Home for Unwed Mothers in
Pasadena, the only girl who reads poetry. He
writes to her from his prep school, and she memorizes
the sonnets of Shakespeare as she takes her exercise
on the dusty, scrubby grounds of
The Home.

No enchantment changes her life.
She is told by the Social Worker that she has
FAILED because
she still loves J
she doesn´t regret doing anything for love,
she doesn´t believe she is bad
she doesn´t regret giving up her child
she believes her life will go on, the same as it has
always gone on
she won´t talk about her mistakes.

This is the same as being on the desert,
this life in the linoleum-floored room,
eating with girls who have been raped by their fathers,
and girls who got caught but didn´t know with what man
and girls who were only 13
and girls who were nurses sleeping with doctors
and girls who wanted to forget everything and join the army,
girls who were all pregnant and ashamed and who knew they were
wandering some desert, though most of them,
most of us, didn’t know
the names of desert rattlers, or moths like the Dusty
Silverwing, or
about the tiny burrowing owls, or the lingering scent of
sagebrush
when the night was pure, pure as we knew we still were.

So, if she were Medea, when the letters came
talking casually about his dates with other girls, un-pregnant
girls,
she decided that she would have no choice. She
would kill him, and her children, and like the Sorceress
leave for another world, in her chariot drawn by dragons.

She gave up her baby. No regrets. Only the weak have
regrets. She flew in her chariot with all her dragonlady power to Berkeley,
then New York, then the Midwest, and finally to this Café
where she sits telling the tale, not of the tribe,
but of herself, and in spite of what others say, she knows
that the song that this Silvery Moon Questing Lady of the
Dragonlight sings,
is the tale for at least half
of the tribe.

Strum, Gunslinger.
Hail, Maximus.
Ascent is descent, Dr. Paterson,
O, Love, one-eyed poet, where are you leading me now. No
one should
Be at the Home for Unwed Mothers. That is the real
Wasteland.
These epistles, not Cantos or songs will be for Craig,
Knight of Hummingbird Light,
for Jonathan who understands the myth of the woman
“Sleeping In
Flame”,
For Steel Man, my husband, who loves me at night in his
invisible Cap of
Darkness,
and for all women, the other half of the tribe,
for Eve who dared to eat the apple, I write this letter
and sign myself,
Diane

The Lady of Light.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Reciclagem - um conto de Nina Adel

[Nina Adel, minha irmã, mora em Nashville, TN. A tradução do inglês é de Claudia Borio]


Olhando para o outro lado do beco onde fica o apartamento de Baromeo D., com nossos apartamentos de frente um para o outro e as latas de lixo embaixo, eu coloco vários espelhos grandes nas paredes ao lado das janelas. Dessa maneira eu posso ver tudo o que ele faz lá quando as suas cortinas estão abertas, o que acontece na maior parte do tempo. Nesses espelhos aprendi algumas técnicas excelentes para cortar vegetais e fazer um bom molho vermelho, marinar tofu, para limpar pincéis e para fazer exercícios vocais antes de cantar. Ele também tem espelhos, mas meu apartamento, para o qual eles estão apontados, tem uma disposição diferente do dele, e tudo o que ele pode aprender com os seus espelhos é como entupir a esmo um minúsculo closet com centenas, talvez milhares de papéis, caixas e livros.
Espiar é uma maneira fabulosa de melhorar a sua a auto-estima. Você pode ver seu vizinho ou amante ocasional se preparando cuidadosamente para o encontro que ele terá mais tarde com você naquela tarde, um sorriso no seu rosto enquanto ele põe a mesa, arruma a cama de um certo jeito, afofa os travesseiros e os coloca com cuidado, levanta uma sobrancelha ousada enquanto separa a música exata para o tipo de noite que ele planejou. Mas então, no dia seguinte, enquanto você ainda brilha com as recordações da noite que passou com ele, você o vê realizar os mesmos atos, com expressões muito parecidas, aprontando-se para a visita de uma loira alta e magra que usa shorts e uma camiseta, e que passa por sua porta precisamente às 18:57h. E de repente espiar já não parece tão fabuloso quanto antes. (Isto também é verdade quanto a ler o diário de seu namorado ou as cartas antigas de seu parceiro, por favor – eu sei do que estou falando aqui – pare de lê-las imediatamente, vá para outro cômodo, coma uma cenoura com molho de maionese ao invés disso).
Há exatamente três de nós nos próximos meses: a loira de camiseta, a dançarina de cabelos negros e pele cor de canela, e eu, é claro, com meus cabelos escuros e crespos com visual judaico, dando a meu vizinho a diversidade que aparentemente ele aprecia tanto. Mas quem sou eu para reclamar? Se eu pudesse ter tudo o que eu queria, eu veria muito mais o tocador de conga caolho e um pouco barrigudo do outro lado da cidade, que definitivamente não pode se deixar revelar pelos espelhos de Baromeo, ou sua esposa o jogaria porta afora e toda a comunidade estaria pegando em armas.
Eu não acho que as outras duas mulheres saibam que eu existo, mas eu obviamente sei sobre elas, portanto Baromeo não se preocupa muito com encontros públicos. Ele até mesmo me levou a uma apresentação de dança da moça de pele cor de canela, e ao local de trabalho – um restaurante vegetariano – da loira. Se eu não me sentisse completamente embriagada e sem cabeça para nada na companhia de Baromeo, eu teria recusado esses convites, fingindo ter outros planos e nunca admitindo ciúmes ou sentimentos de concorrência. Ao invés disso, eu fingi desejar muito mais o conguero casado. Com freqüência eu desejo mais o conguero casado.
Baromeo é um irlandês alto, de cabelos claros e traços fortes e bem desenhados. Ele é também um ótimo cozinheiro, um excelente fotógrafo, um ator de sucesso no teatro local, um terno professor de criancinhas, um pianista, um cantor com ótima voz, um conversador brilhante, um ativista político e um partidário de causas ambientais. Eu não consigo imaginar como alguém poderia não deseja-lo, como qualquer uma de nós três poderia desistir dele voluntariamente. Eu mal consigo assistir um filme até o final na casa dele sem praticamente derreter na sua cama. Helen, a loira do restaurante, porém, não parece tão interessada. E a dançarina nunca fica a noite inteira.
Várias noites por semana nós jantamos juntos na sua varanda. Nós combinamos o que quer que ele tenha cozinhado com o que eu fiz, o que me força a me tornar uma cozinheira melhor. Da minha sacada, eu canto uma triste balada para ele, e através do beco ele fica de pé na varanda cantando para mim a versão de Al Jarreau para “Spain” – forte e rápido – o que me força a aprender a cantar Al Jarreau ainda mais rápido. Na creche onde ambos trabalhamos em tempo parcial, ele faz brincadeiras maravilhosas com as crianças de três anos, o que me força a fazer brincadeiras ainda melhores com as de quatro. Quando não está jantando comigo (ou dormindo com a loira ou a dançarina), ele tem grandes festas e reuniões, o que me força (quando não jantando com ele ou procurando meu conguero casado) a receber ainda maiores, mais diferentes festas com música que chega ainda mais longe do que as festas dele.
Todavia, quando chegamos à Organização do Lar, eu finalmente reconheço que não posso com ele. Baromeo é tão organizado e caprichoso que ele conseguiu obter um quarto para música, um estúdio para editar filmes e revelar fotos, uma grande biblioteca, uma coleção de utensílios e temperos para cozinha, um guarda-roupa completo e todas as suas lembranças de infância em dois cômodos e meio, um apartamento de um andar sobre uma garagem. Eu estou me afogando em um tumulto de livros, papéis, fotos, cadernos, coisas velhas que eu nunca uso, e coisas novas que eu não consigo encontrar sob as velhas, um violão que eu não toco muito bem coberto com folhas de músicas e dúzias de canções inacabadas, e por último, os ingredientes de uma multitude de caldos e sopas e caçarolas internacionais que eu planejo cozinhar assim que eu conseguir limpar o fogão e os balcões.
Uma tarde, quando consigo limpar minha casa para receber companhia, graças aos poucos metros cúbicos que sobraram de espaço em meu closet, uma amiga de meu pai vem à cidade para um retiro e vem passar a noite. Eu estou aproveitando a conversa com ela, tomando vinho e servindo pequenos aperitivos depois de sair para ouvir música, quando o telefone toca e é o meu homem tocador de conga casado. Sua esposa está fora da cidade, e ele tem música muito sedutora tocando ao fundo.
“Eu senti falta de você”, ele diz, “você não pode vir hoje à noite? Eu tenho que ver você. Meus vizinhos também viajaram, por isso você poderia ficar toda a noite, e provavelmente não terá que sair se esgueirando pelos fundos”.
Apesar de eu ficar tentada por essa última parte – não ter que sair me esgueirando pelos fundos – é fácil dizer não e deixar o telefone, pois minha visita está sentada a cerca de meio metro de mim. Quando eu desligo, porém, começo a chorar e conto tudo a ela, o amante casado, o vizinho romanticamente ocupado, coisas não tão apropriadas para revelar a uma amiga de meu pai. Ela me garante que daqui a alguns anos eu dificilmente vou me recordar desses homens e suas manias. E apesar de eu usar quase todos os lenços de papel enxugando minhas lágrimas, na verdade faltam apenas alguns meses para eu me mudar para a Costa Leste e estudar na American Academy of Dramatic Arts, portanto a sua teoria é bastante plausível.
A mudança revela-se uma ótima maneira de escapar de minha relação competitiva com Baromeo, mas nós continuamos em contato por um certo tempo. Um dia, quando estou temporariamente vivendo em um minúsculo cômodo – na verdade uma varanda fechada – de minha prima no Brooklyn, ele liga.
Enquanto eu converso com ele, sentada em minha varanda, ele está sentado na sua, lá no Novo México, vendo meu velho apartamento sendo limpo para o próximo morador. Ele está rindo dos seis mil sacos de lixo que o pessoal da limpeza tirou de meu closet.
“Você não levou nada, Anna?” – ele pergunta.
Na verdade levei, digo a ele, mas apenas o necessário. Você poderia dizer que eu fugi correndo da cidade. Eu deixei até mesmo o meu carro para trás, um Chevy Biscayne 62, prateado e vermelho, que ficou lá na rua. Alguns meses depois, alguns caras o rebocaram e fizeram dele um carro transformado, para cafajestes passearem.
Baromeo e eu dizemos adeus, mas eu não me levanto para devolver o telefone no gancho. Eu escuto minha prima na casa atrás de mim e continuo olhando para a chuva suja do Brooklyn, esperando para ver o que será de mim.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O que virá... proximamente!

Amig@s!

Estou recebendo ótimas colaborações de pessoas próximas: contos, poemas, crônicas, etc. (super-obrigada!) Há vários contos "na fila" e só pretendo esperar uns dias para publicá-los, para permitir um certo intervalo entre uma postagem e outra. Especialmente porque as contribuições tendem a ser longas...

Por enquanto, posto mais um poema meu, em inglês, esforço humilde inspirado numa poeta norteamericana que eu gosto muito, Diane Wakoski. (Estou preparando uns comentários sobre a obra dela que talvez fiquem prontos na semana que vem. )


Desert.

Last night in a dark
dream you climbed behind me
the stony path to the pueblo,
hands thrust warm under the
prickly wool of my poncho.
three hundred nights now i
have feasted on your silence.
this time we sat
on the flattened rocks
still damp before the
desert morning. i pointed
toward the place the sun
would erupt. a distant white horse
broke on the horizon of cliffs
into a gallop. rattlesnake prints
on the red sand, my heart
in your pocket. this is what
you do: pluck them, one by
one, the hearts of the girls,
the women who have dropped
their keys into your hand. who
write you letters and books.
you are a greedy boy.
there is not enough water
in this desert
for your cup.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

O Casamento e os Marimbondos - um conto de Claudia Borio

[ De outra escritora curitibana, e também grande amiga, Claudia:]


Sentada em minha varanda, coloco os pés sobre a balaustrada de ripas de madeira pintadas de verde. Ao longe, vejo passar meu marido, dirigindo um trator, chapéu de palha na cabeça. Como é que pode um homem ser tão bonito. Pena que beleza não se pode comer. Penso em comer, uma onda de náusea me percorre. Respiro fundo, e passa. Por enquanto é só isso a minha gravidez. Não sinto mais nada de especial, e nem minha barriga começou a crescer ainda. Tenho os pés cansados, como sempre, e as mãos ressecadas. Dá vontade de me levantar para passar um creme, mas a preguiça é muito grande. Agora que o sol está baixando, as moscas diminuíram e os pernilongos ainda não estão atacando, preciso ficar sentada um pouco sem fazer nada. Acho que tenho esse direito. Ainda bem que Marilda, a negra (negra!) Marilda veio me ajudar. Sempre penso nela como "la Negresse". Parece mogno polido, sua pele escura e brilhante. Creio que é um anjo que foi enviado para me proteger. Ela faz feijão marrom como a sua pele para comermos no almoço, encera o chão, guarda as roupas e passa pela casa cantando, cantando.
Em cima da minha cabeça escuto o barulhinho da casa de marimbondos. Está ficando enorme. A cada semana eles acrescentam mais uma camada por fora da casa e ela já está com um meio metro de diâmetro. Quando chega esta hora, no final da tarde, os marimbondos todos correm a se recolher, ficam inquietos junto da entrada da casa. Escuto-os voando, nervosos, emitem pequenos estalidos e zumbem. Eles trazem água para dentro da caixa, e lentamente caem alguns pingos no chão.
Meu marido volta e meia fala que vai queimar a caixa dos marimbondos. Eu sempre invento um pretexto e não deixo. Da última vez, fui para a cozinha e comecei a fazer bolinhos de maçã. Quando ele sentiu o cheiro, largou dos marimbondos e veio lanchar. Simpatizo com eles. Tenho a sensação de que me conhecem. E nunca me atacaram.
Marilda fala:
- Eles não picam a senhora porque a senhora é branca e só usa roupas de cor clara. Eles não gostam de gente escura não, nem de cheiro forte. Cruz credo, não gosto desses bichos não.
Eu gosto. Eles me fazem companhia, trabalhando incessantemente em sua casa, estalando ao por do sol.
Parece ridículo imaginar que marimbondos possam servir de companhia para alguém. Tenho vontade de chorar. Levantem-se pés cansados, toca para a cozinha, fazer alguma coisa para parar de pensar.
Devagar, neste local solitário, estranho, diferente de tudo o que já conheci, começa a se delinear um novo caráter de meu marido.
Um desespero amargo parece ir tomando conta dele à medida que as coisas que ele tenta fazer não dão certo.
Vou notando diariamente que ele vai se tornando uma pessoa cruel, que vai perdendo os traços amigos e sociáveis, que vai se endurecendo e seu rosto vai tomando contornos duros e desagradáveis.
Sua boca, que era bela como a de um anjo, vai se abaixando nos cantos, vai se endurecendo e surge uma ruga feia nos cantos.
Na hora das refeições, ele evita olhar para mim.
Procuro não pensar muito nisso.
Céus, minha barriga está cada vez maior, não pensei que fosse ficar tão grande. Já sinto o bebê se mexendo dentro de mim, com espanto e diversão.
Estava me lembrando dos meus tempos de escola.
Sempre fui muito mimada, criada com tudo do bom e do melhor, freqüentando as melhores escolas, fazendo balé. De grande coisa isso não me serviu. Agora estou aqui, perdida nesta desolação, e descubro que não sei como remendar as calças de meu marido.
Estou puta da cara. Peço perdão a mim mesma por usar esta expressão. Mas até parece que falar palavrões me traz um certo alívio. Puta da vida. Puta da cara. Eu aqui, barriguda como se tivesse engolido uma bola de basquete bem cheia, e descubro que uma semana antes de casar meu marido estava alegremente transando com outra mulher.
Como se isso não bastasse, uma colega minha de escola. E uma que sempre foi o patinho feio.
Vou colocando as calças sobre a máquina de costura e recorto as pernas de outra calca que está irremediavelmente rasgada. Com um pouco de jeito vou colocando outro grande remendo na roupa, fazendo um quadriculado com a máquina de costura. Até que não ficou tão ruim.
As lágrimas inúteis vão caindo sobre o remendo. Tenho vontade de enfiar um vodu dentro do remendo, uma magia negra como já ouvi falar que se põe dentro dos travesseiros, um monte de espinhos amarrados com linha preta. Quem sabe um alfinete enferrujado para ele se espetar e morrer de tétano, desgraçado.
Num acesso de ódio, jogo a tesoura contra a parede.
Ela cai, com um barulho surdo.
Minha serva fiel, Marilda, bota a cara avermelhada e suada na janela e me chama, sorridente:
- Patroa não quer doce de leite? Tá pronto!...
Sem mais o que fazer, enxugo as lágrimas com o outro retalho que não cheguei a usar e me vou, comer doce de leite.
E eu que fiz tanta força para me casar virgem. Que idiota.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Sandra Cisneros, escritora chicana.

Com esta nova postagem, introduzo os primeiros frutos do projeto nosso, de tradução para o português de algumas poetas chicanas. Eu sou particularmente apaixonada pela obra de Sandra Cisneros - seus contos, romances e poesia.

Reproduzo aqui minha primeira versão (ainda sem revisão) do poema cujo título original mencionei em postagem anterior - é You Bring Out the Mexican in Me. (Do livro Loose Woman, New York: Vintage, 1995)

Após a revisão, farei as revisões aqui também...


Você faz brotar o mexicano em mim

Você faz brotar o mexicano em mim.
O espiral escuro que se agacha
O uivo desde o centro do coração
A bilis amarga.
As lágrimas tequila desde o sábado todo até
o domingo da semana que vem.
Por você me livraria de todos os outros amores,
entregaria minha casa -de -uma -mulher só.
Te permitiria vinho tinto na cama
sem antes tirar os lençóis de seda
Talvez. Talvez.
Pra você.


Você faz brotar o Dolores del Rio em mim.
A tempestade mexicana em mim.
As navalhas afiadas, o resplandor e a paixão em mim
O crie-Caim e baile com o diabo pata-de-galo em mim

A lantejoula cintilante em mim.
A águia e a serpente em mim.
As trompetas mariachi do meu sangue.
O amor de guerra azteca em mim.
A obsidiana feroz da minha língua.
O jeito de berrinchuda, de bien-cabrona em mim.
Minha curiosidade de Pandora.
A morte e destruição pré-colombinas em mim.
O desastre da mata atlântica, a ameaça nuclear em mim.
Meu medo dos fascistas.
Você faz brotar isso sim, faz sim.

Você faz brotar o colonizador em mim.
O holocausto do desejo em mim.
O terremoto da Cidade de México ano 1985 em mim.
Os vulcões Popocatepetl/Ixtaccíhuatl em mim
A maré de recessão em mim.
O Agustin Lara romântico perdido em mim.
Os taquitos de barbacoa no domingo em mim.
O cubra -os -espelhos –com- lençóis em mim


Doce alma gêmea. Meu Outro malvado,
Sou a lembrança que dá voltas à tua cama pela noite,
que te puxa até que te afines como a lua puxa o oceano.
Arrogante como o Destino Manifesto,
te declaro todo meu.
Quero te chacoalhar e partir em dois.
Quero te manchar e criar caso.
Quero tirar minhas facas de cozinha,
as embotadas e as afiadas,
e brandi-las no ar em sinal de cruz.
Me sacas lo mexicano en mi,
queira ou não, meu querido.

Você faz brotar o Uled-Nayl em mim.
O fique-pra-trás, puta branca! em mim.
A navalha escondida na bota em mim.
O saltador dos penhascos de Acapulco em mim.
O desastre da montanha Flecha Roja em mim
A febre da dengue em mim.
A assassina do jornal Alarma! em mim.
Poderia até matar no teu nome e pensar
que valeu a pena,
Brandir um garfo e aterrorizar meus rivais,
mulheres e homens que vagueiam para te olhar,
na tua lânguida luz. Ah,

Eu sou malvada. Sou a deusa da sujeira Tlazotéotl.
Sou a que engole pecados.
A deusa da luxuria sem culpa.
A debocharia deliciosa. Você faz brotar
a delicia primordial em mim.
A obsessão nojenta em mim.
O pecado corporal e venal em mim.
A transgressão original em mim.


Ocre vérmelho. Ocre amarelo. Indigo. Cochineal.
Piñón. Copal. Sweetgrass. Mirra.
Todos os santos, benditos e terriveis.
Virgen de Guadalupe, diosa Coatlicue,
Os invoco.

Quiero ser tuya. Só de você. Só você
Quiero amarte. Atarte. Amarrarte.
Amar como uma mexicana ama. Deixe
que te mostre. Amar da única forma
que aprendi

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Efeito Piazzolla - um poema de Marcia Cavendish Wanderley

Ontem, pela primeira vez
Não foi a sala escura,
não só isto
Nem aquele tango , homenagem absurda
a uma estória espúria

talvez uma alucinação provocada
por nuvens de cigarros, e pela música que move
as sombras na sala , ao cair da tarde
talvez ...

Sei apenas que tinha a forma da dor,
mas não pungente,
palavra banal, cafona, até baixo calão
segundo aqueles que entendem,

Cruenta, sim, isto foi, no lado errado
do peito imaginário.
Um enfarte ao contrário.

Não me matou, mas quase
acreditei, com pudor ,
que era aquela coisa inexistente
entre nós dois...

nuvem volante, vinda do oriente
pássaro áspero pousado no deserto
sem deixar rastro
na ondulada areia-herança,
do nada

domingo, 11 de janeiro de 2009

Desafios da tradução/A translator´s challenges

Eu e minha colega, a socióloga e poeta Marcia Cavendish Wanderley, estamos iniciando, junto com o novo ano, novo projeto, que tem como objetivo traduzir e refletir sobre a obra de algumas poetas chicanas da atualidade. Hoje topei com um primeiro desafio: era só
começar pelo título de um poema que gostei muito, de Sandra Cisneros -- You Bring Out the Mexican in Me. O quê fazer com isso? (Claro, já pensei em algumas soluções. Mas nenhuma que realmente satisfaz ...)

É curioso, alguns poemas são tão difíceis de traduzir que parece melhor desistir. Mesmo quando são da gente, ou seja, quando se tem a maior liberdade para modificar, alterar, substituir uma metáfora ou refazer um verso. Quando enfrentei meu maior desafio de tradução até a data - produzir a versão do poema Three Women de Sylvia Plath (veja a primeira postagem deste blog) - por algum motivo, o prazer foi muito maior que a dificuldade. Talvez por toda a leitura que vinha fazendo sobre Plath, e da própria obra dela, que fez o trabalho fluir com um elevado grau não só de identificação senão de segurança -- se a tradução é, como já disseram, sempre de certa forma, uma traição, a minha, dela, estava sendo muito doce ou muito tranquila.

Trabalhar com criações próprias é, em todo caso, uma boa forma de brincar e aprender. Como disse, nem sempre parece funcionar. Tenho um poema meu, escrito em inglês, que consegui traduzir de uma maneira que me deixou relativamente satisfeita -- um certo equilibrio entre fidelidade e traição, será? (Publico aqui. E como sempre, agradeço sugestões e comentários...)


the goblins

They come to you for a reason,
the little children, the grown
babies. They knock on your
door well past midnight, wearing
torn robes, sunken eyes,
urgent hands, so that you
even from your dreaming
are roused, unable to
turn away. You are burning
with fever and they come in
with a small blue glass
of water. You moisten your lips
and slowly grow used to their
nocturnal chatter, secretly hope
never to sleep again through
the night. It is your desire,
so bitter that it is
killing you.



Noturno.

Eles te procuram
por um motivo, as
crianças pequenas, as
grandes crianças. Batem
na tua porta muito após
a meia noite, vestindo
túnicas rasgadas, os olhos
fundos, as mãos urgentes,
e você volta dos sonhos, não pode
virar as costas. Você está ardendo
de febre e eles vêm, trazendo
água num pequeno copo azul.
Você molha os lábios, acostumando
lentamente com seus passos e
pulos, em segredo tem vontade
de nunca mais dormir
a noite toda. É o teu desejo,
tão amargo que está
te matando.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Desejo e Solidão - Richard Miskolci

Publico aqui os primeiros parágrafos de um texto recente de um dos meus grandes amigos e interlocutores, Richard Miskolci. (O texto completo encontra-se online no:
www.clam.org.br/publique/media/RichardMisk.pdf)


Nos dois últimos séculos, o tema da solidão na sociedade contemporânea gerou importantes obras literárias e profícuas reflexões sociológicas, mas apenas recentemente a teoria social distinguiu as diferentes formas como as pessoas se sentem sozinhas e as categorias históricas que constituem os eixos para pensarem sobre si mesmas como solitárias. De forma esquemática, o sociólogo Richard Sennett distinguiu três formas de solidão: aquela imposta pelo poder como o exílio; a solidão auto-imposta do rebelde e, por fim, a solidão daqueles que se sentem estranhos em seu próprio mundo e, por causa desta diferença, apartados das pessoas normais.[i] A breve reflexão que segue focará sobre este último tipo de solidão engendrado por um desejo socialmente considerado ameaçador.
No intuito de compreender as origens desta solidão torna-se necessária uma breve genealogia do sujeito moderno, ou seja, uma história da forma como a sociedade ocidental associou desejo e verdade individual. Segundo Michel Foucault, a associação entre sexo, subjetividade e verdade remonta à moralidade pagã centrada em valores como monogamia, fidelidade e procriação. Esta moralidade antiga foi incorporada pelo Cristianismo, mas transformada de forma importante por Santo Agostinho quando descreveu o que hoje chamaríamos de libido ou desejo como o componente interno, rebelde e perigoso da vontade interior. Segundo o teólogo cristão, a ereção involuntária de Adão equivalia à sua rebelião contra Deus. A teologia moral de Agostinho problematizou o desejo de forma a ver no interior dos sujeitos uma luta espiritual que exigia um constante auto-exame, uma hermenêutica do sujeito em que só se alcançaria o domínio de si por meio da vitória definitiva com relação à vontade. O eixo desta luta espiritual contra a impureza estaria em descobrir a verdade sobre si mesmo e vencer as ilusões.
A hermenêutica de Agostinho foi aprimorada e disseminada quer no contínuo exame de consciência instituído pela Reforma Protestante quer por meio da confissão obrigatória dos católicos imposta a partir da Contra-Reforma. A mesma técnica espiritual disseminou-se e adquiriu contornos agnósticos na vida cotidiana assim como na sua herdeira mais conhecida, a prática psicanalítica. O paralelo crítico não deixa de ser esclarecedor: enquanto no passado se confessava a fraqueza da carne ao padre, desde o final do século XIX confidenciam-se segredos sexuais ao terapeuta. Uma coisa é certa, a centralidade do desejo como meio de acesso à verdade do sujeito é uma herança cristã que nos lega a associação entre sexualidade e caráter[ii] ...
[i] FOUCAULT, Michel e SENNETT, Richard. Sexuality and Solitude In: London Review of Books. May 21-June 3, p.4-7, 1981.
[ii] Não por acaso, muitas das obras que constituíram historicamente um saber hegemônico sobre a sexualidade têm como eixo esta associação como os livros de Cesare Lombroso e o clássico de Otto Weininger Geschlecht und Charakter (Sexo e Caráter, 1903).

domingo, 4 de janeiro de 2009

Rilke e formas de ser e de estar- no- mundo

para nc

Conversando recentemente com um amigo meu sobre uma dessas temáticas nossas mais recorrentes - relações amorosas, formas de ser e estar no mundo de mulheres e homens hoje, formas de apego das pessoas às pessoas - me veio à memória um poema de Rainer Maria Rilke que havia lido, anos atrás, numa revista de letras norteamericana. Na época, quando o li pela primeira vez, me chamou a atenção e gostei dele o suficientemente para tomar o tempo para recortá-lo, levar para fotocopiar (as fotocópias, a gente sabe, costumam resistir mais o passar dos anos do que o papel fino e fácil de manchar do jornal) e guardar. Curiosamente, tempo depois – estando no meio de pesquisa para um texto sobre a produção literária e cultural das mulheres – tive motivo para lembrar muito dele. Mais de um dos autores que lia, ao comentar sobre sensibilidades “modernistas” no masculino e no feminino, assinalava que Rilke, quem escrevia belos textos satirizando o desejo de posse – atitudes ou comportamentos que procuram possuir, aprisionar, reter para sempre um outro ser - na sua própria pratica parecia padecer de uma tendência contrária: a falta de capacidade de se apegar (muito) às pessoas, e particularmente, às mulheres que passavam por sua vida. Ou seja, o que por um lado aparece como rebeldia libertária (“ critique of the property inscriptions and the violence of male possessiveness in the bourgeois institutions of love and marriage” – *) poderia facilmente se tornar a recusa da conexão com o Outro. Construía -se um “masculino heróico” (talvez menos em Rilke do que em outros escritores representativos ) no qual a independência, a liberdade e a criatividade construíam-se em oposição a vínculos firmes, principalmente com membros do sexo feminino - elemento comum este, aliás, a vozes de homens que escreviam em outras épocas, e sendo particularmente notável na obra dos escritores da geração beat norteamericana.

As vezes quase parece que nunca conseguimos sair de um mesmo terreno muito cheio de armadilhas. O mundo muda um pouco, sim (entre outras coisas, durante todo o século XX, são muitas as escritoras que ponderam formas de significar a liberdade “no feminino”, conjugando-a também com a conexão). E há quem argumenta (o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em primeiro lugar) que estamos no momento das “relações líquidas” – as sociabilidades são mais frágeis e a tendência é de fugir dos compromissos “mais sólidos” que caracterizavam outras épocas da modernidade, com evidentes perdas para nossa vida em comum. Embora eu não endosse muito as teses de Bauman, por inúmeros motivos que não poderei discutir aqui, talvez pudéssemos dizer que há mais mulheres hoje, entrando na modalidade “líquida” dos homens. Se esta, a final de contas, não a consideramos tão nova, e mais uma generalização de uma tendência com raízes numa vertente da rebeldia modernista. Estamos perante a novidade? Ou meramente reproduzimos antigas dicotomias de comportamento masculino e feminino? Qual a relação entre “liberdade” e “conexão” ? São questões que tem todo a ver com o cotidiano que quase tod@s vivemos, embora os elementos nos pareçam mais abertos, menos presos a formulações binárias e mais prováveis que se apresentem de formas ainda... mais complexas!

Talvez tenha exagerado na digressão. Volto agora ao poema em si, que lembro ter lido, a primeira vez, “apenas” pelo prazer do texto. Posso hoje compartilhá-lo com vocês, para ler, curtir, e quem sabe, trocar umas reflexões sobre estes assuntos que não têm “ponto final”... (Agradeço aqui à tradutora, pela gentileza de permitir esta reprodução do seu trabalho.)

Rainer Maria Rilke
You need not be afraid, God (from The Book of Hours)


You need not be afraid, God. They say: my
to all the things that will be patient.
They are like wind that brushes against branches
and says: my tree.

They hardly feel
how everything their hands grasp glows red-hot
so that they could not even by its outer hem
hold on to it and not burn down to ashes.

They will say my as sometimes someone likes
to call the Duke a friend, in talk with peasants,
but only if the duke is great – and very far.
They will say my of their peculiar walls
not knowing even who is master of their house.
They will say my and call it property
while everything shuts down if they come near,
just like an obsolescent charlatan
perhaps will say the sun is his, and lightning.
Like this they say: my life, my wife,
my dog, my child, and know full well
that all that: life and wife and dog and child
are foreign forms, with which they blindly
and with their hands outstretched sometimes collide.
Certain of this, of course, are only great ones,
the ones who long for eyes. For all the others
don´t want to hear their impoverished wandering
does not cohere with anything around,
that, while they´re pushed away with all their havings
and not acknowledged by their property,
they have the woman no more than the flower
which is of foreign life to anyone.

Don´t fall, God, out of equilibrium,
He, too, who loves you and who recognizes
your face in darkness – if he, like a flame,
will shudder in your breath – does not possess you.
And even if someone will grasp you in the night
so that you must arrive into his prayer:
you are the guest
who will go again.
Who can embrace you, God? For you are yours,
by no proprietor´s hand disturbed,
like wine which while it is not yet mature
and growing ever sweeter, is its own.

“Du mußt nicht bangen, Gott.” American Poetry Review, back
cover, Jan/Feb 1999.)
Traduzido do alemão por Silke-Maria Weineck, U. of Michigan.

* Andréas Huyssens, “Paris/Childhood: the Fragmented Body in Rilke´s Notebooks of Malte Laurid Brigge” In: Huyssen & Bathrick, orgs. Modernity and the Text: Revisions of German Modernism. NY: Columbia U. Press, 1989, p. 136

sábado, 3 de janeiro de 2009

Leitura recomendada


O livro DO JEITO DELAS: Vozes femininas de língua inglesa, com traduções de Jorge Wanderley, da obra poética de várias escritoras . Org. de Marcia Cavendish Wanderley, Carlos Eduardo Fialho e Suely Cavendish. RJ: Sete Letras/FAPERJ, 2008.

Um poema de Rodrigo Garcia Lopes

Rodrigo Garcia Lopes, conhecido poeta, escritor e tradutor,
oferece este poema para Juntando palavras:


A LUME SPENTO


Colhe com seus olhos a fumaça que insinua
ao penetrar — sendo incenso e silêncio —
sua mente em meio ao tráfego intenso
da manhã, relumbre em suas mãos nuas.

Daqui das margens desse sonho
ideogramas de formas obscuras
reescrevem seus gestos num bazar estranho
sem saber ao certo o que procura:

Se meus olhos, opacos, entre bijuterias
baratas que você arremessou
(como quem dedilha um sol menor ou
a linha acesa de minhas artérias)

Mas sem querer você abre, de leve,
as persianas e invade uma sutil
reminiscência do que nunca existiu
(Ou, como seu rosto, foi tão breve).


Rodrigo Garcia Lopes (Nômada, 2004)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Projetos e poemas...

Pretendo logo começar a postar - como trabalho em andamento -poemas de várias poetas "chicanas" (que geralmente escrevem em inglês, com uso também de palavras e frases em espanhol) que farão parte de um novo projeto de tradução, a ser realizado em 2009. Aliás, estamos com trabalhos de Cherrie Moraga e Sandra Cisneros em mãos, mas estamos à procura de outras vozes; se alguém tiver recomendação, agradeceremos.

Hoje, para o segundo dia do ano novo, vou resgatar mais um poema meu, meio antigo, escrito em inglês e sem versão em português:

Gypsy II.

there were days i would step out
from my cove, into the sunshine
of some midday, to pick red
berries and feel the company
of doves and slippery fishes.
my hands were two open gourds,
swishing cool water for the little ones,
gathering the grains of sand through the green
hours, finding in them some shining stone or
some dark stone brighter than the others.

now solitude has slipped
from the summer. others have
settled the furthest shores,
and so we recede, past the blue
hotel and the rocks with their angry
black letters. my children
cling hungrily to me. in the
distance, the craggy outline
of the city looms. the soles of my feet
thicken, not stumbling now
on the long-rooted vines
or the twisted brush of the beach.
gulls stalk close to me, take bread crumbs
from the shiny leather of my palms.
when the wind comes, it is cold and low
and loved. we are alone, waiting for night.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

TRÊS de Larissa Pelucio

Um conto escrito por Larissa:

Três

Ele se via diante de três possibilidades. Estava feliz. Três é um bom número. Os números ímpares têm arestas, deixam brechas que abrem possibilidade. São mais flexíveis, uma vez que oferecem mais plasticidade além da rigidez do par. Eram três. Deu um gole triunfante na cerveja e se sentiu ainda melhor. Quente e poderoso. Nunca tinha se visto assim. Sempre havia se sentido feio, inadequado. Desinteressante, nunca. Apenas não tinha a menor chance de mostrar tudo o que tinha por dentro. Aquele turbilhão de sentimentos, de filosofia, de descobertas incríveis feitas entre os livros e a solidão do desprezo.

Três. Estava vingado. Vingava-se da vida. E não era propriamente uma vingança, uma vez que não tinha raiva. Só prazer. Triunfo. César, Napoleão. Era isso. Estava cheio de poder. Um poder inebriante que não nascia da opressão, só da força. Da certeza que Era. Era muito bom Ser. Domino, logo existo.

Quantas descobertas. Quantos delírios. E um mundo inteiro lá fora. Zeus no Olimpo. Sátiro na terra. Baco à mesa. Deu um outro gole feliz e pensou nas três. Uma suficientemente conhecida para despertar ainda interesse. Na sua avaliação, depois de conhecê-la, ela era complicada. A outra, ingênua demais. Problemas futuros, com certeza. Meninas que batem pestanas enquanto falam dão problema, sentenciou com ares de sábio. Mas havia a de número três. Forte. Sarada. Durinha. Carne quente e, certamente, macia. Morena. As morenas são sempre as morenas. Eram três morenas. Era muita sorte. Com certeza, três era o seu número de sorte.

Virou-se para dentro de si mesmo, enquanto as palavras vinham fáceis. Fluíam certeiras, sem qualquer dificuldade. Ele sentia o efeito de suas palavras e saboreava-as. Um homem quando sai na noite se sente um guerreiro, pensou sem filosofia. Mas disse aquilo com uma maestria, com uma simplicidade confunciana. Estava dito. ...Sai pronto para o combate, para o enfrentamento. Nunca sabe exatamente o que vai acontecer. Nem se importa. Alguma coisa vai acontecer. Mulheres, não. Mulheres planejam. Arquitetam cuidadosamente. Armam teias ardilosas. São ótimas estrategistas, mas não entendem nada de logística. Por isso perdem. Saem premeditadas. Tudo foi estudado, excerto a possibilidade de se renderem de forma incondicional. Pronto, estão derrotadas. As mulheres sabem o que querem, por isso planejam. Homens temem todos os desejos que não sejam sexuais. Homens têm fome. Mulheres têm sonhos.

Era o efeito da cerveja. A cabeça fervia verdades axiomáticas, e tudo que um dia fora nebuloso e inacessível lhe era revelado. Mais um gole. Um brinde à superação dos recalques. Dio, como o tempo pode ser bom com a gente! E aquelas três ali. Elas o querem. A três querem. Cada uma de um jeito. Uma quer exercer seu poder; outra se sentir seduzida; a última, ser salva da torre por um príncipe de espada em riste. Ela é ingênua. Um perigo. Sabe, dessas que você tem certeza que grudam, que choram e, que pior de tudo, não dão? Não assim, na primeira noite. Nem na primeira semana. Mas não vamos descartá-la. É bom tê-la assim, aqui.

Satélites. Mulheres satélites fazem com que nos sintamos astros.
Cerveja demais?! Não. Astro, sim. Ele brilha no escuro daquele bar. Sua mente brilha e ele pode sentir que enfeitiça. A noite pode ser interminável. A cerveja pode ser interminável. Os satélites podem continuar ali para sempre. Ele controla a situação sem qualquer presunção de ser deus. Apenas astro.

Mas as mulheres não são satélites. Ela percebem. São percepitivas demais. Já sabem. Só uma será eleita e, como são amigas, preferem não entrar em atrito direto. Duas delas, oh não, vão-se embora. Não. Não. Não. Mas elas se levantaram. E se vão: uma triste, outra sonhadora.

The Game is over. Mais uma ficha, mais um gole. Ele estava com sorte. A número três ficou. Ela não era nem ingênua nem suficientemente conhecida. Ele não era assim normalmente, mas pensou que tinha ficado com o melhor pedaço. Desculpou-se para si mesmo. Amava as mulheres, ainda que as temesse, e não queria ser desrespeitoso pensando nelas como reses. Mas já não era ele que pensava. Homem com tesão não pensam. Júlio César, Sansão, Pares. Todos derrotados pelo tesão. Cleopatrás, Dalilas, Helenas são todas devoradoras. Mas a vida não é um épico nem uma lenda grega. A histórias das vidas de pessoas como nós são todas com “H” minúsculo. Não havia o que temer. Seria só mais uma noite agradável ao lado de uma mulher interessante, vivendo prazeres da carne. Só.

Mas as mulheres são imprevisíveis. Como entendê-las? Lá estava ela ali, a número três. Cada gesto dela dizia “vem”. Cada sorriso pedia mais. Vaidosa e envaidecida ela estava em jubilo. As outras duas haviam desistido, admitido que aquela noite era dela. Ele percebeu isso. Como homem arguto que era, viu tudo o que não se mostrou, mas se disse de forma muda. Ajeitou-se na cadeira. Só mais um gole. Sentiu-se confortável naquele corpo. Disse “vamos”, ela disse sim. Foram.

Aqueles terríveis segundos que separam o fim da dança do acasalamento até a hora de consumar o rito são intermináveis. Arrastados e opressores. Mudos e excitados eles andam em direção ao carro. Ela pensa em tantas coisas, mas nada é suficientemente pesado para tirar-lhe a leveza daquela certeza: ele a quer. Ela pensa nos próximos passos. O olhar, a aproximação, o beijo. Olha-o rapidamente para lembrar como era mesmo aquela boca. Pensou de novo no beijo, e já não estava mais tão certa de que o beijaria. Assim, de pé, ele não aprecia tão interessante. Foi inevitável: comparo-o com seu mais recente homem. Não. Ele não era nem mais gostoso, nem tão interessante. Ela nem sequer o amava. Não poderia. Já estava dentro do carro. Já estavam parados diante da porta de sua casa. Ela não poderia.

Ele não podia simplesmente beijá-la. Era uma impossibilidade do corpo. Travado parou para olhá-la quase pedindo. Ela o olhava quase se desculpando. No olho dela podia ver que ela queria, mas não sei porque porra, caralho, merda, ela não podia. Porra, caralho, merda. As outras duas! Porra, caralho, merda, ela foi embora com aquele olhar dissimulado. Sumiu rápido no vão da noite. Ele só. Ele só e com tesão pensou como era morna aquela mulher complicada e já conhecida. Imaginou como seria bom ter entre os dedos os pêlos aloirados das pernas ingênuas da menina que batia as pestanas ao falar.

Ele se via diante de três possibilidades. Estava cansado. Três horas da manhã. Descartou prontamente, duas das três possibilidades. The game is over. As fichas haviam acabado, a cerveja fermentava dentro de sua alma trôpega. Ele era um homem em estado de natureza. Tinha fome e tesão, sem nenhuma filosofia.