quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

O Casamento e os Marimbondos - um conto de Claudia Borio

[ De outra escritora curitibana, e também grande amiga, Claudia:]


Sentada em minha varanda, coloco os pés sobre a balaustrada de ripas de madeira pintadas de verde. Ao longe, vejo passar meu marido, dirigindo um trator, chapéu de palha na cabeça. Como é que pode um homem ser tão bonito. Pena que beleza não se pode comer. Penso em comer, uma onda de náusea me percorre. Respiro fundo, e passa. Por enquanto é só isso a minha gravidez. Não sinto mais nada de especial, e nem minha barriga começou a crescer ainda. Tenho os pés cansados, como sempre, e as mãos ressecadas. Dá vontade de me levantar para passar um creme, mas a preguiça é muito grande. Agora que o sol está baixando, as moscas diminuíram e os pernilongos ainda não estão atacando, preciso ficar sentada um pouco sem fazer nada. Acho que tenho esse direito. Ainda bem que Marilda, a negra (negra!) Marilda veio me ajudar. Sempre penso nela como "la Negresse". Parece mogno polido, sua pele escura e brilhante. Creio que é um anjo que foi enviado para me proteger. Ela faz feijão marrom como a sua pele para comermos no almoço, encera o chão, guarda as roupas e passa pela casa cantando, cantando.
Em cima da minha cabeça escuto o barulhinho da casa de marimbondos. Está ficando enorme. A cada semana eles acrescentam mais uma camada por fora da casa e ela já está com um meio metro de diâmetro. Quando chega esta hora, no final da tarde, os marimbondos todos correm a se recolher, ficam inquietos junto da entrada da casa. Escuto-os voando, nervosos, emitem pequenos estalidos e zumbem. Eles trazem água para dentro da caixa, e lentamente caem alguns pingos no chão.
Meu marido volta e meia fala que vai queimar a caixa dos marimbondos. Eu sempre invento um pretexto e não deixo. Da última vez, fui para a cozinha e comecei a fazer bolinhos de maçã. Quando ele sentiu o cheiro, largou dos marimbondos e veio lanchar. Simpatizo com eles. Tenho a sensação de que me conhecem. E nunca me atacaram.
Marilda fala:
- Eles não picam a senhora porque a senhora é branca e só usa roupas de cor clara. Eles não gostam de gente escura não, nem de cheiro forte. Cruz credo, não gosto desses bichos não.
Eu gosto. Eles me fazem companhia, trabalhando incessantemente em sua casa, estalando ao por do sol.
Parece ridículo imaginar que marimbondos possam servir de companhia para alguém. Tenho vontade de chorar. Levantem-se pés cansados, toca para a cozinha, fazer alguma coisa para parar de pensar.
Devagar, neste local solitário, estranho, diferente de tudo o que já conheci, começa a se delinear um novo caráter de meu marido.
Um desespero amargo parece ir tomando conta dele à medida que as coisas que ele tenta fazer não dão certo.
Vou notando diariamente que ele vai se tornando uma pessoa cruel, que vai perdendo os traços amigos e sociáveis, que vai se endurecendo e seu rosto vai tomando contornos duros e desagradáveis.
Sua boca, que era bela como a de um anjo, vai se abaixando nos cantos, vai se endurecendo e surge uma ruga feia nos cantos.
Na hora das refeições, ele evita olhar para mim.
Procuro não pensar muito nisso.
Céus, minha barriga está cada vez maior, não pensei que fosse ficar tão grande. Já sinto o bebê se mexendo dentro de mim, com espanto e diversão.
Estava me lembrando dos meus tempos de escola.
Sempre fui muito mimada, criada com tudo do bom e do melhor, freqüentando as melhores escolas, fazendo balé. De grande coisa isso não me serviu. Agora estou aqui, perdida nesta desolação, e descubro que não sei como remendar as calças de meu marido.
Estou puta da cara. Peço perdão a mim mesma por usar esta expressão. Mas até parece que falar palavrões me traz um certo alívio. Puta da vida. Puta da cara. Eu aqui, barriguda como se tivesse engolido uma bola de basquete bem cheia, e descubro que uma semana antes de casar meu marido estava alegremente transando com outra mulher.
Como se isso não bastasse, uma colega minha de escola. E uma que sempre foi o patinho feio.
Vou colocando as calças sobre a máquina de costura e recorto as pernas de outra calca que está irremediavelmente rasgada. Com um pouco de jeito vou colocando outro grande remendo na roupa, fazendo um quadriculado com a máquina de costura. Até que não ficou tão ruim.
As lágrimas inúteis vão caindo sobre o remendo. Tenho vontade de enfiar um vodu dentro do remendo, uma magia negra como já ouvi falar que se põe dentro dos travesseiros, um monte de espinhos amarrados com linha preta. Quem sabe um alfinete enferrujado para ele se espetar e morrer de tétano, desgraçado.
Num acesso de ódio, jogo a tesoura contra a parede.
Ela cai, com um barulho surdo.
Minha serva fiel, Marilda, bota a cara avermelhada e suada na janela e me chama, sorridente:
- Patroa não quer doce de leite? Tá pronto!...
Sem mais o que fazer, enxugo as lágrimas com o outro retalho que não cheguei a usar e me vou, comer doce de leite.
E eu que fiz tanta força para me casar virgem. Que idiota.

2 comentários:

  1. Anônimo1/29/2009

    Este é o estilo da Claudia! Gostaria de ler mais dos seus contos. Ainda mais?! Pois é...

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  2. Anônimo8/06/2009

    Esse casamento já acabou, não aconteceu ou vai acontecer??? Deveria escrever mais.....

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