Fábula III, ou “as formas da coragem”.
Para
Joyce, Hettie e Diane. E para Andressa tb.
Era apenas uma menina
e o mundo, um lugar lotado
de criaturas com sonhos baratos.
Pegava todos os dias, de manhã
o bonde que descia a ladeira,
seu coração dando saltos no ponto
onde a curva sugeria uma fuga
onde a mão do condutor podia
vacilar por um instante e perder
o rumo.
Noitezinha, na hora da sopa
a mãe chamava
para ela colocar na mesa
os pratos azuis, os guardanapos de pano
amarelados, as grandes colheres,
e ela obedecia,
mansinha, as unhas de esmalte
de uma semana
guardando seu segredo escarlate.
Quando lá fora chovia, como de
costume, gotas misturando-se com
poeira e através da janela suja
todas as formas
alongavam-se, encurtavam-se,
ela via figuras
dançando na água ou nas chamas
da noite e sabia que
em algum lugar o caminho bifurcava
e seria só o rumo que ela conseguisse
vislumbrar quando todo mundo parasse
de lhe falar, de lhe indicar com
as mãos ou apontar com os dedos
o enferrujado dever, ou quando ela
não mais escutasse.
Os meninos pulavam
os vagões do trem ou as
ondas mais altas, e o tempo todo ela
pensava que isso não era para ela
porque não era longe o suficiente
ou talvez porque ser
apenas uma triste
fêmea da espécie
não lhe permitisse um lugar
entre os que desafiavam
os mares, a Bruxa de Novembro
ou o Chinook. Enquanto isso
os garotos saiam e voltavam à casa.
Ela ouvia suas histórias e percebia
como esticavam suas meia-verdades
sobre a bruma, as baleias, os
adversários com suas espadas,
ou as armas comuns do bandido
da
esquina.
Dançava sozinha frente ao espelho,
diante de escuros olhos ciganos,
examinando a curva dos seus braços,
o quadril que se alargava, os
pequenos seios que endureciam sob
um fino tecido, as pernas que embora
curtas pudessem carregá-la muitas milhas.
Sentia então um estranho tipo
de medo-coragem
que lhe dizia coisas inteligíveis:
que poderia dormir ao relento,
construir um provisório
abrigo, aprender as línguas de
humanos e tigres, ser nômade
como qualquer uma
ou como nenhum outro.
And then she went...
- Miriam Adelman