segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Tales of one city (uma crônica em elaboração)

TALES OF ONE CITY (uma crônica em fase de elaboração)
Lembro claramente do choque que tive quando cheguei a Curitiba, início dos anos 90, após muitos anos morando primeiro, na cidade de México e depois, em NYC, e me vi diante de atitudes cotidianas de pessoas da classe média curitibana 'típica', que eu - sempre esperando o melhor - logo descobri preconceituosas, egoístas, com preocupação quase exclusiva com a própria família, a pesar de todos os conflitos que esta última também lhes trazia. Com isto eu quero dizer que era totalmente evidente que eles, como todos nós, passavam por muitos problemas nas suas vidas pessoais: nos seus casamentos e relações amorosas, com seus filhos, com o próprio desejo, com a violência doméstica e assim por diante; contudo, mantinham tudo recalcado, disfarçado, para tentar sustentar publicamente a cara da 'família tradicional feliz'. Nunca tinha me visto diante de tanta hipocrisia.
Nem preciso dizer que a palavra 'feminismo' era anátema. Na época, porém, eu me dedicava à pesquisa que nesse tempo pertencia a meu projeto de doutorado. Era sobre 'relações de poder no casamento'. Assim, mesmo sem carro e sem conhecer bem a cidade, eu pegava ônibus para cima e para baixo, gravando entrevistas com mulheres de 'classe média' e 'classe trabalhadora', empregadas, profissionais, donas de casa, que davam depoimentos sobre o que era, para elas, ser mulher casada, com filhos pequenos, nos anos 90. Das muitas que eu lembro - e sobre as quais já escrevi - lembro de uma moradora de periferia que me recebeu na sua casa - uma casa de material, linda e super arrumadinha- cujo marido tinha oficina de mecânica, tipo 'fundo de quintal'. Ela me disse que seu marido a tinha proibido de trabalhar fora, mas ela, desejosa de uma atuação fora do âmbito doméstico, inventou então de fazer um trabalho voluntário 'com os pobres' ... se me lembro bem, ajudando outras mulheres a aprender a ler e escrever. Pois o que ela mais queria, mais ainda do que ter o 'dinheiro dela' (importante para tantas mulheres que falaram para mim das suas necessidades de autonomia financeira) era participar da vida pública e social. Ela que era uma mulher católica, e não tinha vínculo algum com a vida política organizada. Nessa época, vale acrescentar, eu ainda falava mais portuñol do que português, mas mesmo assim, arregacei às mangas e me joguei 'no campo', onde logo comecei a conhecer esse outro universo, que contrastava com o egoísmo e 'umbiguismo' que prevalecia no bairro de classe média em que a gente morava. Foi também nessa época que sofremos uma situação de abuso por parte da proprietária do prédio onde moráva
mos, bem nesse bairro de 'classe média típica curitibana' (notem bem as aspas, pois nas ciências humanas, sabemos que as generalizações são tanto necessárias quanto tristemente enganosas..) Essa experiência foi , para mim, uma marcante aprendizagem também, lição sobre algumas 'raízes do Brasil'... pois a proprietária e sua família (que incluía um marido bem tipo coronel que bebia muito e a quem ela detestava, embora como parceiros de negócios defendessem seus 'interesses' a unhas e dentes) vinham do interior, onde tinham sido fazendeiros; falavam dos empregados da fazenda com muita condescendência, e ao que tudo indicava, conosco, que morávamos no prédio que eles construíram para poder viver de rendas aqui na cidade, esperavam ter o mesmo tipo de relação bizarra. Bom, para encurtar a história, pelo menos por enquanto, vou contar que desatou-se um conflito por conta de um simples questionamento que lhes fizemos sobre ajuste de aluguel, que se traduziu em mudança completa comportamental dos srs: da atitude paternalista, para o assédio cotidiano (tipo de desligar a eletricidade quando estava no elevador com meus dois filhos pequenos, ou fazer uma macumba na porta da nossa casa..). As outras famílias moradoras do prédio também sofriam das arbitrariedades dos proprietários, mas quando falávamos com elas para obter um pouco de apoio (moral, antes de mais nada), diziam que a pesar de entenderem perfeitamente, 'não queriam se meter'. Daí outra vez, a gringa que eu era, que eu sou, de certa maneira, se chocou, pois nunca na minha vida tinha vivenciado essa absoluta falta de solidariedade vindo de outras pessoas adultas e que se sabiam diante de uma situação de injustiça... Bem, embora sendo uma triste introdução a uma 'cultura local' que não consegui esquecer, eu, como a pessoa otimista que sou por natureza, logo 'esqueci': a gente se mudou, e eu embora detectasse essa mentalidade em outros lugares e outros 'personagens', fui dando mais importância a outras coisas- ao nosso trabalho na UFPR, aos meus filhos que cresciam e se tornavam excelentes pessoas, aos e às jovens que eram meus alunos e alunas na universidade, cada vez mais questionadores, abertos para o mundo, críticos de discursos e práticas antigas , esses que sustentam até hoje ainda terríveis desigualdades de classe, raça e gênero e poderes simbólicos violentos e podres. Botamos nossos corações e mentes numa luta que estava nos levando para algum lado, permitindo a visão de um mundo solidário, e talvez, com sorte, ainda a sobrevivência de um planeta tão destruído e depredado pelo egoísmo e cobiça humanos....
PS Esta história nem tento finalizar ela hoje. Prefiro deixá-la em aberto, pois há tanta coisa em jogo agora, neste momento e conjuntura. Será que terei que retomar o fio, em tons absolutamente trágicos? Será que ainda há pessoas que 'dormiram no ponto' e podem acordar?


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