Com algumas modificações, vai uma crônica que escrevi mais de uma década atrás. Acho que hoje dá para postá-la aqui, agora que eu posso dizer que faz parte das vivências da época da 'minha juventude’ .
Gracias a la vida...
Ele sempre me olhava com esses olhos grandes, escuros meio esverdeados, e me fazia perguntas engraçadas: “Professora, como serão as relações entre os homens e as mulheres no futuro?”, ou “Professora, quero estudar ‘a noite’. Não é alí que as pessoas se procuram, para se acasalarem?” Ou afirmava, outra vez com aquele sorriso, aquele rostro iluminado, “Professora, eu quero estudar essas coisas ... do feminismo!” E olhava para mim de uma forma intensa, acesa, urgente.
Eu comecei o levando na esportiva, quase resistindo, achando que afinal de contas, deveria considerar sua atitude como elogio, como identificação. Era tão bonito ele, mas tão menino, com o andar ainda de pós-adolescente, o tom sempre ingênuo de suas perguntas. Mas continuava a me procurar. E vinha com suas histórias: a ex-namorada, de família rica, que pôs fim à relação com o jovem com poucas chances de se tornar um bom provedor, um bom senhor esposo para uma advogada; o irmão mais velho, que quando tinha quatro anos e ele dois, o empurrou da janela do segundo andar e até hoje o acusa de ser um incompetente que “só estuda para comunista”; a mãe separada que é artista plástica e gosta de inventar teorias “do nada”, o pai que se maravilhava com o menininho que sempre gostava de conversar com todo mundo e que até propiciou sua ida para o Peru, mas com quem já não gosta mais de morar...
Acho que qualquer uma na minha posição poderia começar a se envolver. O será só eu, a eterna carente? Um dia ele me pergunta, “Não entendo quem é que começa o relacionamento, o homem ou a mulher.” E eu aproveito, “Quer dizer, quem que começa, você ou eu?” “É, isso.”
Convido ele para almoçar no dia seguinte, e ele aceita. Chega ao meu escritório até meia hora antes do horário marcado, lindo, o rostro iluminado. Passamos umas horas legais: a conversação, as risadas, animados, felizes. Mas a gente não se toca. Nenhum sinal de aproximação vem de ele, e eu fico morrendo de medo, pois o que é que uma quarentona como eu pode esperar de um rapaz daqueles, qual a liberdade que posso tomar? Qué confusão, penso eu. Eh, menina,, veja só como você gosta de arranjar para você umas belas confusões! E quando quase sem linguagem para isso acho a forma de perguntar, ele me responde como surpreso, que não é nada disso, como se não houvesse nada no caminho para me indicar, como se todas as palavras e olhares dele valessem muito menos que seu peso, seu som, sua textura...Mas eu as ouvi! Eu estava te vendo! Lógico que isso não falo, falo só que tudo bem, não se preocupe, imagine... E me conta a história da menina do curso de geografia, a colega com a qual ele gostava de conversar, como foram no cinema, e depois para a casa dela, e depois para a cama dela, e depois ele, arrependido, está com a menina “o perseguindo” por todo quanto é canto da faculdade...
Como é que eu posso entender essa vida!! No carro, conversamos mais, deixo ele em frente da reitoria, a gente se abraça, sinto o corpo, o calor dele. Estou com uma vontade danada de chorar, mas só digo, “Não se preocupe. Conte comigo” Continuo reto, vou assinar o recibo da tradução, vou buscar o filho, pôr o jantar na mesa, os meninos na cama, o tempo todo com um vazio expandindo-se por dentro.
Depois, esses largos dias na Patagonia, tardes de vento, as montanhas- finalmente vejo a Cordilheira dos Andes! - e eu com sua figura me rondando, eu que não consigo esquecer. Gracias a la vida que me ha dado tanto, cantamos com meus amigos pelos caminhos pedregosos da Carretera Austral. O sul do Chile é tão belo e me faz lembrar outros momentos desta longa vida de menina atrevida. Tá bom, já vivi muito, já sei que “paixão é doença”, ou que, em todo caso, minha própria paixão pela vida continuará sempre sendo maior do que a paixão que pudesse chegar a sentir por qualquer homem. Que todos os homens que conheci intimamente, com uma só exceção, sempre acabavam se mostrando pequenos frente à generosidade de espírito da qual nós mulheres somos capazes. E assim por diante...
O vento varre a Patagonia, bate na noite nas asas da barraca, canta com fúria nas tardes, na casa da Carla e do Enrique, antes da chuva. Em Buenos Aires, ando feliz. Compro mais cds e fitas de música latinoamericana e uma saia vermelha para sair à noite, e quando saimos uns jovens na rua me vêem feliz, e dizem, Mira como esa mujer está hermosa! E eu sei que é minha coragem que é grande e talvez hermosa, que a paixão se apaga e a vida continua, que eu andarei por essas ruas e muitas outras, que amarei muito aos meus amigos e aos meus filhos, e esse enigmático muchacho, talvez muito mais “muchacho” do que enigma, irá já ocupar seu lugar fugaz na minha história. E, é verdade. Gracias a la vida...
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Lindo, Miriam!
ResponderExcluirAcho que preciso tomar um vento da patagônia...
Belo blog! bjs, Flávia
Obrigada, Flávia! Acredito que nos veremos em julho (RAM). bjs.
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