O Enchente
Eu tinha doze anos aquela vez que dormi na
terra.
O quarto perfeito de madeira estéril,
era o melhor lugar, o porão.
No ritmo dos aparelhos domésticos
uma criança dorme como se não tivesse
nascido.
A máquina de lavar rimbombava ao longo da
noite
como um emotivo coração, a geladeira batia,
resgatava os ossos e discutia,
o radiador um pulmão que ardia,
mas eu estava segura, entre os tubos
do encanamento
Em
cima, quando tudo tinha ruido,
Escutei
meus pais rearranjando os estragos do dia
até
formar uma cama.
Ouvia
minhas irmãs cavando com suas patas,
se
enfiando sob as tabuas.
Dai
começou a nevar, implodindo o céu,
ao
redor de nós numa formação vazia.
Na primavera aconteceu, como deveria ser.
A chuva violenta irrompendo por trás dos muros
me empurrou para fora do alçapão
navegando numa banheira azul redonda.
Num telefone feito de latas e corda
meus irmãos me chamaram.
Alfa! Na escuta?... Mais
eu já tinha ido.
O rio martelava e borbulhava entrando pelos
ralos,
a corda rompeu, suas vozes ferozes como a dança
dos
pernilongos na cabeça de um alfinete, nublando
as ruínas
que eu deixava atrás, o enchente me apressando
sobre
sua larga superfície, rasgando minha camisola,
minha
manta de ferrões
Deixei atrás de mim uma espuma branca, a rede
se arrastando em baixo da água até os pés
dos irmãos e irmãs.
Agora eu temo por eles, pisando
nas aberturas e sendo sugados
na corrente da minha sorte. Entenda:
é como se eu pudesse escapar só ao abandonar
tudo.
Não pensei naquilo que ficava atrás,
entrançado entre grossas raízes, as paredes
de terra
sob ameaça, os fios se desprendendo dos postes
deslizando-se, vivos e perigosos, para dentro
d'água.
- Louise Erdrich
Versão: Miriam Adelman
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