Imagem: Miriam Adelman
Quarta feira ensolarada, após dias de chuvoso inverno curitibano. Deve ser meu dia de sorte, penso eu – sendo
exatamente este, o único que tinha livre, que tinha programado para botar as
mãos às tarefas fotográficas. Lá vou eu,
um pouco receosa de pegar minha máquina – minha primeira Nikon, comprada com um
tanto de sacrifício, junto com minhas primeiras lentes tão cuidadosamente
escolhidas – em direção ao centro histórico da cidade, que apesar de tão mal
falado (lugar de assaltos, assédios e todas aquelas coisas que a gente
preferiria ignorar mas que fazem parte do nosso “normal” de grande cidade) até
agora sempre me reservou boas surpresas. Mas estou um pouco cética. Queria ter chance de fazer algo diferente,
tipo ir para um terreiro de umbanda ou poder captar com minhas lentes - e minha
mão de iniciante - os rituais mágicos de alguma outra tribo. Mas vou lá, àquilo que posso.
Na primeira quadra das minhas andanças, bem onde as fachadas
começam a mudar para aquelas tentativas coloridas de preservar um tempo
longínquo, passo na frente da loja de antiguidades. Passo uma parede recém pintada de
ocre e branco, e olho, meio de relance, para um homem negro sentado a um lado da
porta, vestindo colar de madeira e tocando, bem suavemente, um tambor. Ele deve ter achado que sou turista – afinal,
não estamos a poucos dias da Copa? – e sorri para mim, perguntando se
preciso de alguma coisa, se pode me ajudar com “alguma informação?”
Me animo.
- Na verdade, eu queria lhe fazer uma fotografia!, lhe digo.
- Quer? Tudo bem,
pode então ...
Como eu estou ainda na fase de me sentir meio idiota fazendo
este tipo de solicitação (mas é melhor, com certeza, do que roubar imagem), me
lanço às explicações. Tipo, “sabe, tô fazendo um curso de fotografia (que
provavelmente se tornará minha melhor e eterna desculpa ) e preciso cumprir uma tarefa...” E daí faço umas fotos, posadas, bonitas – bom, talvez nem tanto, mas
se dependesse só da vontade dele de ser fotografado, seriam belíssimas. Ele e seu amigo uruguaio, dono da loja, puxam
o papo comigo. Devem ter percebido meu
sotaque, que apesar dos meus 23 anos em terra brasileira continua me
revelando. E rola conversa, da boa. Em certo momento, eu lhes comento,
- Sabem o que nosso professor de fotografia nos mandou
fazer? Um ensaio: “Do sacro ao profano”... Difícil, de certa maneira. Porque eu tenho meu pensamento sobre
isso. Ou na verdade, nem sei exatamente o que seria 'o
sacro' para mim...
- Então- diz o novo amigo - deixa eu pegar este
cachecol e faço para vc... um turbante de africano! Veio trabalhar o exu! Você sabe, na verdade,
tudo é sagrado, tudo é profano. O profano é sacro. O sacro é profano...
- É exatamente a isso
que eu estava querendo chegar!
Filosofamos um pouco e ele me pede que
eu lhe mando as fotos –' todos usamos Facebook, não é´?' – e eu lhe respondo que
sim, claro, com prazer, mas que não espere muita coisa, pois eu sou apenas
iniciante nesta história de máquina e imagem, mas enfim, vamos lá...
A gente se despede, sigo meu rumo, que ao longo da tarde vai
enredar pelo Museu de Arte Sacra, a porta fechada do Templo Hari Krishna, ruas. Paro num
café e faço umas fotos da minha absolutamente mundana xícara, repleta
com as absolutamente banais marcas de batom e
café nas bordas, e ainda assim vou procurando efeitos de luz com a mesa de
vidro e as grandes janelas que há por trás dela. Mas não
gosto dos pobres resultados que espio no monitor da minha máquina. Debato se vou comer uma tortinha de maça ou
de banana e decido esperar chegar em casa, lembrando dos bolos que tinha
comprado de manhã, e me lembrando que seria melhor não ficar gastando à toa nessas saidinhas. "Vamos, já deu", penso eu, " fiz fotos em vários lugares
sacro-profanos e certeza vou achar entre todas elas algumas das quais não me
envergonho. Porque também tenho as que
fiz uns dias atrás, no meio do mato..." Vou voltando pro ao carro, entre frustrada e
contente. Paro para tirar uma última
foto, uns jovens que se juntaram numa esquina, e bem nesse momento uma mulher loira que parou o
carro na esquina tira umas fotos deles, vira para mim, me olha e me
diz, sorrindo, “Uma foto da fotógrafa também!” Me sinto elogiada, mas por pouco
não faço algum comentário para lhe desfazer a ilusão. Mudo de ideia. Sorrio também para ela e lhe digo, “É,
a gente se entende, né?” O carro arranca
e eu o puxo o papo com os jovens: jovens viajantes
latino-americanos que ocupam minutos de sinaleiro fechado para fazer seu ato
cigano e juntar os trocos que precisam para continuar na estrada. As meninas
são lindas e radiantes, os meninos também, e na luz de final de tarde, todo se
cobre de uma estranha luminosidade, uma neblina clara e azulada. Converso com eles em castelhano e lhes digo
que os admiro, que são muito corajosos. Vou andando de novo, lembrando
do que pensei uns dias atrás, quando comecei a refletir sobre alguma concepção
do sagrado que valesse para mim. E naquilo que tinha vindo à mente: os laços humanas e a estrada,
a natureza – o que resta dela- e os estranhas veredas do coração, quando mudam de rumo e nos pegam de surpresa. Trocas
inesperadas. E uma tarde como esta: momento sacro, se é que isto existe, tarde
sacra, se é que pode.
Nenhum comentário:
Postar um comentário