terça-feira, 6 de outubro de 2015

Pequena crônica cotidiana.


                   para  G., para J., para Terezinha e para Thays


"Você tem irmã?", me pergunta a G., enquanto dirijo para a casa dela, carona bem merecida após a jornada que deixou minha casa mais limpa e brilhante do que nunca.
"Tenho sim, três".
"Ah, então, você sabe como é, né?  A gente não quer deixar de ser solidária, mas também", ela pausa, suspira, faz uma cara de perplexa, e continua, "essa minha irmã precisa aprender a cuidar da vida dela um pouco melhor!  Ninguém mais aguenta..."

A G. criou as duas filhas sozinha.  Uma, aos 16 anos, já é mãe; a outra, um pouco mais velha, surda-muda,  está terminando o ensino médio e "vai muito bem".  O filho de 19 anos foi morto uns meses atrás, em quem sabe quais circunstâncias violentas de periferia urbana...  O sobrinho dela, filho da J., está na cadeia, por motivos que todo mundo que aqui me lê pode imaginar.   E a   J. vive brigando com a filha, que também criou sozinha,  e quando não sabe mais o que fazer com a rebeldia - os discursos da igreja não lhe rendem para tamanha tarefa! - foge para a casa da irmã...

A  G. é uma bela e ainda jovem nordestina, com cara de índia e cabelo crespo alisado,  carinhosa, esperta, cujo sonho,  segundo ela relata, seria abrir uma lojinha de comidas naturais.  Sua irmã  mais velha, talvez um pouco menos esperta, mas quem também não teve chance de estudar na juventude,  conseguiu se alfabetizar com mais de 30 anos, como ela mesma relata com o devido orgulho.   A sua vez, a G. também fala com orgulho, que recebe bolsa-família sim, que é o seu direito, que é pouco, mas lhe permitiu fornecer material de escola para as filhas.   E que ela sabe sim lidar com as dificuldades da vida, e não precisa de homem que não a saiba respeitar, ou que queira viver à custa dela.  Para sua irmã, ela me explica, tudo foi 'mais difícil'.   Mas também tem seus direitos. Também é batalhadora.

O tránsito do final da tarde é tensa, e vamos pela rua desviando de buraco e ônibus, até chegar no portão das cinco casas de aluguel  ("de material, boas, mas o portão tá estragado", ela tinha me dito) onde ela mora.  Então a  G. desce do carro e se despede de mim,  e combinamos qualquer coisa para outro dia.  Me disse, "Vai com Deus" -usando esse vernáculo distante do meu horizonte discursivo- , mas desta vez, eu simplesmente respondo, " Você também".  E embora o deus dela não entre na minha cabeça, nem de longe ( e tanto queria que pessoas como ela pudessem ouvir outras falas, apreender outras maneiras de pensar sobre a vida) eu com isso estou apenas querendo lhe dizer que lhe desejo toda a sorte e todos os direitos que ela, e tantas outras brasileiras como ela, merecem, pois tá difícil, este mundo!  Mas talvez o que eu mais  gostaria de poder lhe dizer  - o que procuro lhe mostrar, na medida do possível - é que e sinto gratidão a ela - e todas as mulheres que com seus cuidados movem o mundo que tão pouco soube cuidar delas,  tão pouco se interessou por elas. E que continuam em frente pelos filhos e pelos momentos de prazer que encontram,  como e onde quer que sejam, ...Que minha gratidão  a ela vai muito além das tarefas do dia,  que não foram poucas..mas foram feitas, por sinal,  com tanto empenho... e solidariedade.

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