terça-feira, 26 de julho de 2016

As chinesas

Elas povoam o bairro, estas mulheres de idades diversas, estilos de vestir que variam desde vestes que remetem à discreta 'boa moça' a quase desleixadas; na 'média', estão as  de calça de couro sintético apertado com detalhezinho aberto nas costuras,  ou vestido de corte simples, super salto, ou um shortzinho com meia calça preta por baixo que se faz acompanhar por sapatilha, ou por um tênis bem limpinho e vermelho.  Decote pouco, mas a maquiagem, isso sim, nunca falta... as camadas que embranquecem ou escondem os sinais do tempo, ressaltam os olhos amendoados, as bocas da cor de sorrisos infinitos, bem pintadas, o detalhe perfeito, como as sobrancelhas.

Estão sempre na rua, 24/7, mas há dias e horas que a confluência é maior. Se por exemplo saio cedo de manhã, sempre há algumas que estão ocupando o dia bem antes do que eu; se volto sozinha após ter pego o último metrô numa sexta ou sábado, posso escolher a rua menos transitada para chegar em casa, sua presença fornecendo um sossego para quem definitivamente não tem costume de sentir-se bem andando por las calles solitárias de uma cidade grande, de qualquer cidade.  Mas no domingo, dia que costumo sair apenas no final da manhã, já estão elas, enfeitando o caminho que me conduz até o bulevar e além, quase se parecendo com  moças e senhoras curitibanas rumo à alguma igreja evangélica dessas mais 'moderninhas' e elegantes, como as de Juvevê ou Centro Cívico. Essa pouco barulhenta força de trabalho ( ou de mercado) aumenta sensivelmente aos domingos à tarde, um verdadeiro ferver de moças e mulheres, e claro,  de homens que não estão en famille,   que não foram ao cinema ou ao parque e nem sequer ao bar com seus compas.  Mas a 'clientela' ainda parece comparativamente escassa.  Tampouco consigo identificar padrão algum em eles: os vejo de idades diversas, mais brancos, não asiáticos - vi uma vez uma moça recusar ficar com um jovem negro- alguns jovens, outros bem carecas, barrigudos, beirando sua 'melhor idade' que talvez os deixe solitários e inoperantes. Bem como no livro Memórias ... de Garcia Marquez.  

Por vezes sinto que as mulheres me olham com reconhecimento, pois  já são dois meses que moro neste bairro, e devem ter percebido que observo, embora tenha em grande parte abandonado meu desejo de fotografá-las. Mas o olhar inseguro, suspeito, que sentia vir delas sempre que eu descia para a rua com a máquina na mão,  pouco a pouco parece dissipar.  Me conhecem: um esboço de sorriso,  um  bonjour ocasional, já que não estamos nessa de 'eu finjo que não te vejo', até o sobressalto um dia que saí rapidamente para a rua de havaianas e com as unhas do pé bem feiinhas como a brasileira que não sou. Já faz um tempo que começo a reconhecer algumas, como uma magrinha que quase sempre usa uma calça cor ferrugem, tênis, o cabelo amarrado, óculos de marca, e parece ter alguma função de agenciadora: falando alto em chinês com as outras - geralmente com sorriso e alguma vez com cara de braba - e com celular na mão, conversando simultaneamente com alguém que está do outro lado da linha e com las chicas que estão ao lado dela, na rua.  Mas algumas vezes vi ela com saínha curta, salto alto, encostada num muro, esperando igual as outras.

Suponho que algumas conversam com seus clientes pelo celular.  Eu as ouço sempre falando em chinês, ou em alguma outra língua igualmente indecifrável para mim,  mas principalmente, apoiadas em algum muro,  aguardando o que parecem ser as raras vezes que alguém aproxima para negociar programa. O vejo acontecer de vez em quando:  o cara chega, identifica a moça ou a mulher, conversam, chegam a um acordo,  e daí ela se manda, cabeça erguida, bem na frente, eles sempre atrás, a uns 100 metros de distância, embora com um andar bem direcionado que enganar muito não deve.  Para algum lugar que não identifico: umas vezes, vi eles descer a escada do metrô, e outras, virar na esquina e sumir por aí.

Se pudesse, eu puxaria o papo com essas mulheres.  Como isso não é possível, tento me concentrar, captar qualquer coisa que seus gestos, tons de voz, sua discreta linguagem corporal possa me dizer.  Parece que entre elas, rola amizade, rola companheirismo.  Não sei, mas as vejo todos os dias, rindo juntas,  fofocando talvez, e as expressões de ternura, como uma que abraçava a outra, encostava a cabeça no peito dela, enquanto esperavam, esperavam. O que sentem? As vezes, penso que vejo o medo, o tédio, a dor, como uma, mais velha, que vi várias vezes sentada de lado de fora de um dos restaurantinhos populares do bairro - há uma grande clientela 'ocidental' que o frequenta, as mesas sempre lotadas para o almoço e jantar, a pesar do ambiente escuro e pobre do interior-  a cabeça apoiada nas mão, para abaixo, os longos cabelos tingidos jogados para frente.

Já li sobre as máfias que agem em torno delas, embora uma outra fonte argumente que uma boa parte delas trabalha 'como autônomas', e que por isso ainda conseguem enviar dinheiro para suas famílias na China - que podem ou não saber de onde vem os proventos.  Também ouvi dizer que trazem, em seus olhares desconfiados ou tristes, histórias de uma vida outra, de ter alguma vez tido outro tipo de emprego, de ter estudado.  Não consigo imaginar como era sua vida antes -  em Dongbei (Manchuria) talvez, no nordeste da China, uma região que da qual se diz que teve a sorte ou o azar de 'industrializar-se antes de outras regiões do país- , e se foram filhos ou netos que deixaram atrás,  ou apenas algum tipo de anonimato diferente  deste, onde há uma oferta aparentemente muito, muito maior do que a demanda. ( Que também pode estar oculta,  por punida...)

Seus conterrâneos de sexo masculino têm outro destino, sentados nos bancos do boulevard, ou aglomerados perto da escada do metrô, conversando, por vezes rindo, envelhecendo, sem nada para vender.  Tento imaginar eles na rua - não só eles, os chineses, senão qualquer eles, de idades e cores e corpos diferentes, mas não passa de uma imagem cômica, deprimente, que não convence ninguém, pois a arte que as chinesas apreenderam é um destino que se conjuga apenas no feminino, e no triste ofício de esperar,   24/07 nas ruas sujas e degradadas de Belleville, com todo o paradoxo contido num nome que vem de muito antes quando ninguém imaginava elas, um dia, por aqui. 

Referências:
http://ouigour.over-blog.com/pages/Les_prostituees_chinoises_a_Paris-307287.html


Carta de Seybah Dagoma (deputada federal pela 5a circunscrição de Paris, Comissão de Assuntos Estrangeiros, data de 13 de julho de 2016.  Distribuída no bairro.

Imagens e texto:  Miriam Adelman

Nenhum comentário:

Postar um comentário