terça-feira, 30 de dezembro de 2008

AMOR-COISA de Sabrina Lopes

A Sabrina contribui com mais uma de suas criações literárias :

Melancólico lago de porra permanece quentinho até secar entre dois corpos.

Depois de ter estragado o celular e o controle remoto da televisão com mordidas, encontrou uma mulher de olhar assustado, que ficava em silêncio a maior parte do tempo e que ele chamava pelo nome da primeira namorada.
– Eu te amo! Você rói as unhas dos próprios pés.
No encontro anterior à mudança, tocaram ternamente as barrigas, mantendo quente a poça branca.
– Posso roer as suas, B-Raquel.
– Brraquel! Brra-quel!
Ela repetiu com sotaque alemão a palavra que só existia no seu francês particular: “vocábulo triste”, pensou, enquanto desatava a rir. Ele tossia:
– Vamos parar de fumar.
– Diga meu nome.
– A minha língua sabe. Às vezes ela se confunde para chamar, mas em outros atos de amor te identifica, minha eleita.
Já deixava sua língua se confundir com um trecho mudo do outro corpo.
–Antes: diga o meu nome.

– Raquel. Lupércio, meu chefe.
– Muito bonita a sua namorada.
– Você elogia a ele, não a mim.
– É você a bonita...
– Como se eu fosse uma coisa de bom gosto que ele carrega, “que belas flores você escolheu no mercado!”.
– Que mau humor dessa sua namorada!
– Eu digo apenas para que você note.
– A Raquel (alívio por não ter gaguejado) gosta de ser chamada pelo próprio nome.
(Alívio também por se recusarem a trocar elogios, segundas intenções de amores. Basta a culpa que os derruba na cama).

– A vida é feita de materialidade – ela com as compras – o café, o preço, teu braço para o qual passei as coisas na entrada, mas principalmente essas flores.
– E as intenções, os símbolos...
– Estou falando de coisas que nos fazem, coisas que fazemos.
Não tentava profundidade na constatação. Ela só falava para criar a oportunidade de silêncio.
– Eu amo essas flores porque representam teu desejo de beleza.
– Eu amo muitas coisas em você, coisas que representam a si próprias, como essas flores que você carrega.

Eram dois e jovens. Dormiam. Eles precisavam fazer alguma coisa.

O lençol tinha muito sangue. Mais um mês:
“todos os heróis têm a roupa manchada de sangue”.
Refestelaram-se no sangue, mas o lençol foi limpo.
– Quero deixar no mundo uma mancha mais difícil.
– É para isso que as pessoas têm filhos! (Ri).
– Vamos invadir aquele trecho da reserva ecológica, perto do sol. Ele já é quase inacessível. Vamos construir uma praça proibida, que seja como o lugar onde o sol se põe...
– ... Como um lugar onde ninguém pisou. Uma praça sem cidade, que existirá para nossa vida privada como uma das maravilhas do mundo.
Foi como começaram a fazer planos. No entanto, não queriam produzir nada nos intervalos do trabalho. Gostavam de imaginar todo o necessário para efetivar alguma coisa irrealizável, uma grande, e não pequena, fuga. Era pela intenção, pelo significado, que os planos valiam. Os planos nunca tiveram valor – isso foi sabido e não dito.
Porém – talvez porque a recompensa fosse uma primeira intenção –, o plano que parecia mais utópico entre todos foi aquele que chegou a se realizar nos intervalos do trabalho:
– Fazer sexo, dormir, comer pizza. Podíamos viver sempre assim.
– Fazer nada.

Um nome é e não é uma coisa. Amor não tem massa, embora possa ser comestível; ele se manifesta em atos e dizer é agir concreta e abstratamente. Ela não responde mais “eu também”. Calar não é consentir.

Ele comeu sem querer os bombons que tinha comprado. Em seguida vai buscar flores.
– A vida não é feita de festinhas de trabalho.
– Elas acontecem só uma vez por ano, então...
– Que bom que as famílias, a gente vive separado.
Longo silêncio.

Ele evita dizer seu nome, ele e ela evitam dizer o que seria dito em uma cerimônia de casamento – exceto “que vestido lindo”. Porém, é um lance de sorte constituir um casal que não briga na locadora.

– Eu também.

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