quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

A túnica de Nessus, II. Assia Djebar.


Tradução a partir da versão em inglês do livro  "Fantasia: an Algerian cavalcade"


Escrever na língua do inimigo é mais do que rabiscar um monólogo resmungado em baixo do próprio nariz; usar este alfabeto  te exige colocar teu cotovelo a uma certa distância na tua frente para formar um baluarte - contudo, nesta posição torta, o que você escreve retorna como na maré.
  Esta língua foi importada  em um passado turvo e escuro, espólios arrancados do inimigo com  quem nunca se trocou uma palavra afetuosa... O francês, que já foi a língua das cortes de justiça, utilizada da mesma maneira por juízes e condenados.  Palavras de acusação, procedimentos jurídicos, violência - estas são as fontes orais do francês dos colonizados.
   Enquanto me aproxime ao inevitável cessar fogo do final de cada guerra, minha escrita retorna com a maré às orlas abandonadas do tempo presente e procura um lugar onde o armistício linguístico pode ser negociado, um pátio com fontes borbulhando onde as pessoas vão e vêm.
  Esta língua foi utilizada no passado para enterrar meu povo; quando a escrevo hoje, me sinto mensageira do passado, carregando uma missiva selada que pode ser uma sentença à morte ou ao calabouço.
   Ao me despir nesta língua, inicio um incêndio que pode me consumir. Ao tentar uma autobiografia na língua de quem era o inimigo...
  

Após cinco séculos de ocupação romana, um argelino chamado Agostinho começa a escrever sua própria biografia em latim. Fala sobre sua infância, declara seu amor pela mãe e pela concubina, se arrepende de sua época de devassidão e conta como foi finalmente consumido pela paixão por um Deus cristão.  E sua escrita deslancha,  com toda inocência, na mesma língua de César ou Sulla - escritores e generais da exitosa 'campanha africana'.
  A mesma língua passa dos conquistadores aos povos assimilados; torna-se mais flexível após cobrir os cadáveres do passado com uma mortalha de palavras... O estilo de Santo Agostinho levanta-se junto com sua extasiada busca por Deus.  Sem esta paixão, ele voltaria à indigência: 'Tornei para mim mesmo o país da indigência.' Se este amor não o mantivesse em uma viagem de euforia, sua escrita seria auto-dilaceração!

  Após o bispo de Hippo Regius, transcorrem mil anos. O Maghreb testemunha uma procissão de novas invasões, novas ocupações... Ataques repetidos de homens da tribo Banu Hilal finalmente sangram o país até a brancura.  Logo após essa virada fatal, o historiador Ibn Khaldun,  autor inovador de A história dos bérberes, e figura tão grande quanto Agostinho, arredonda uma vida de aventura e meditação ao compor sua autobiografia em língua árabe, lhe dando o título Ta' arif. Quer dizer, 'Identidade'.
    Como Agostinho, pouco lhe importa que escreve em uma língua que foi introduzida na terra dos seus pais através da conquista e acompanhada por sangria! Uma língua imposta tanto por estupro quanto por amor...
  Ibn Khaldun tem quase setenta anos:  após um encontro com Tamerlane - sua última aventura - ele se prepara para morrer no Egito.  De repente, se entrega ao anseio de olhar para si mesmo: e se torna sujeito e objeto de uma autopsia imparcial.

Da minha parte, mesmo quando estou compondo as frases mais comuns, minha escrita é imediatamente capturada pela armadilha da velha guerra entre dois povos.  Portanto, balanço como pêndulo, entre  imagens de guerra (guerra de conquista ou de libertação, mas sempre no passado) e um amor ambíguo e contraditório.
   Minha memória esconde-se numa montanha preta de restos que se decompõem; os sons que  a carregam rodopiam para cima e para fora do alcance da minha caneta. 'Eu escrevo' declara Michaux, 'para empreender uma viagem através de mim mesmo'. Eu viajo através de mim mesma ao capricho de quem era o inimigo, o inimigo cuja língua  roubei ...
   A autobiografia praticada na língua do inimigo tem a textura da ficção, pelo menos enquanto você continua dessensibilizada, esquecendo os mortos que a escrita ressuscita. Embora pensasse que simplesmente empreendesse uma 'viagem através de mim mesma', descubro que apenas estou escolhendo um véu diferente. Embora pretendesse que com cada passo para frente  eu me tornaria mais claramente identificável, me descubro paulatinamente sugada pelo anonimato dessas mulheres do passado - minhas ancestrais!

Sou obrigada a reconhecer um fato curioso: a data do meu nascimento é mil oitocentos e quarenta e dois, o ano que o General  General Saint- Arnaud chega para incendiar a zaouia do  Beni Menacer, da tribo da qual eu descendo, e ele entra em arroubos por causa das hortas, as oliveirais, 'as mais belas de toda Argélia', como descreve numa carta a seu irmão - oliveirais que já desapareceram.  
   É o incêndio de  Saint-Arnaud que ilumina meu caminho de saída do harém cem anos mais tarde: é porque seu fulgor me rodeia que encontro a força para falar.  Antes de capturar o som da minha própria voz , consigo escutar os últimos suspiros, os gemidos daqueles que foram emparedados nas montanhas Dahra e dos presos da ilha de Sainte-Marguerite; me fornecem um acompanhamento orquestral. Me intimam, me encorajam os passos  indecisos, para que quando se der o sinal, minha canção solitária se levante.


A língua dos Outros, que me cerca desde a infância, a dádiva que meu pai me concedeu amorosamente, a língua que se colou em mim desde então como a túnica de Nessus: é essa dádiva que veio do meu pai que cada manhã me levava pela mão para me acompanhar à escola.  Uma pequena menina árabe, numa aldeia do Sahel argelino...




Tradução/Imagem:  Miriam Adelman

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