Quinto movimento: a
túnica de Nessus.
Meu pai, uma figura
alta e ereta que veste um fez, caminha pela rua da aldeia; ele me puxa pela mão
e eu, que durante tanto tempo me orgulhava de mim mesma - a primeira menina
da família para quem foram compradas bonecas francesas, a que tinha escapado
definitivamente do enclausuramento e nunca teve que bater o pé e protestar
porque a obrigavam a colocar uma burca, ou ceder mansamente como minhas primas,
eu que por vontade própria me cobria com um véu para assistir um casamento de
verão como se fosse um elegante vestido, considerando-o extremamente atraente -
eu ando pela rua segurando a mão do meu pai. De repente, me surgem as
ressalvas: não seria meu 'dever' ficar com meus pares nos aposentos femininos?
Mais tarde, como adolescente, quase intoxicada com a sensação da luz do sol na
minha pele, no meu corpo móvel, uma dúvida surge na minha cabeça: 'Por que eu?
Por que só eu, de toda minha tribo, tenho esta oportunidade?'
Eu coabito com a língua francesa. Por vezes eu
brigo com ela, ou sinto uma explosão de
carinho por ela, ou um lapso de silêncio
abrupto ou raivoso - estas são ocorrências normais na vida de qualquer casal.
Se deliberadamente eu provoco uma disputa, será menos para romper o
insuportável tédio da monotonia do que
por minha vaga consciência de ter sido obrigada a entrar muito cedo neste
'casamento', um tanto como outras meninas da minha aldeia que são
'comprometidas' ainda na infância.
Neste
sentido, meu pai, professor de escola, para quem uma educação francesa forneceu um
meio de fugir da pobreza da família, provavelmente tenha me doado antes da
idade de 'casamento' - não havia pais que abandonavam suas filhas a
pretendentes desconhecidos ou, como no meu caso, as entregavam ao campo
inimigo? O não reconhecer as
implicações deste comportamento tradicional adquiriu para mim um significado diferente: quanto eu tinha dez ou onze
anos, entre minhas primas se entendia que eu era a 'predileta' do meu pai, pois
ele sem hesitar me salvou do enclausuramento.
Mas as nobres princesas com idade para casar
também atravessam fronteiras, por vezes contra sua vontade, para cumprir tratados que põem fim à guerra.
O francês é minha 'língua
madrasta'. Qual então minha língua materna que perdi tantos anos atrás, que me
deixou na mão e sumiu? ... Língua materna, ora idealizada ora menosprezada,
relegada aos gritos dos feirantes e aos carcereiros?... Com o fardo dos tabus
que herdei, descubro que não tenho memória de canções de amor na língua árabe.
Será porque fui afastada dessa fala apaixonada que acho o francês que eu
uso tão sem graça e sem vantagens?
O poeta árabe descreve o corpo de sua amada; o
excêntrico andaluz compõe um tratado trás outro, listando uma multiplicidade de
posições eróticas; o místico muçulmano, vestido em farrapos de lã e satisfeito
com um tanto de encontros, exprime sua sede de Deus e seus anseios do além com
um excesso de epítetos extravagantes... A prodigalidade dessa língua me resulta
um tanto suspeita, consolo com palavras vazias... sua
riqueza esbanjada enquanto despossuídas de sua herança árabe.
Palavras de amor
ouvidas numa terra selvagem. Após vários séculos de enclaustramento, os corpos
das minhas irmãs começam a emergir do seu esconderijo, aqui e acolá, ao longo
dos últimos cinquenta anos; elas tateiam, cegas diante da luz, antes de ousar
dar passos para frente. O silêncio rodeia as primeiras palavras escritas, e
alguns risos dispersos se ouvem por cima dos gemidos.
'L'amour,
ses cris (s 'ècrit): minha mão enquanto escrevo em francês faz um
trocadilho das aventuras amorosas que vem à tona; a única coisa que meu corpo
faz é ir para frente, totalmente despido, e quando descobre as ululações das
minhas ancestrais nos antigos campos de batalha, descobre que é ele mesmo que
está em jogo: não é mais só questão de escrever para sobreviver.
Muito antes dos
franceses desembarcarem em 1830, os espanhóis estabeleceram seus presídios como pontos estratégicos ao
longo da costa magrebina -- Oran, Bougie, Tangiers, Ceuta; os governantes
nativos do interior continuaram a resistir e as forças da ocupação
frequentemente tiveram suas provisões alimentares cortadas; nessa situação,
adotaram as táticas do rebato: se
escolhia um lugar isolado de onde partir para o ataque, e para bater em
retirada e usar nos intervalos entre as hostilidades para cultivar a terra ou
renovar provisões.
Este tipo de prática de guerras,
ofensivas rápidas alternando com rápidos recuos, permitia que cada parte
continuasse lutando indefinidamente.
Após mais de um século
de ocupação francesa - que terminou em tanta carnificina, pouco tempo atrás - um
semelhante terra de ninguém continua separando as línguas francesa e indígenas,
entre duas memórias nacionais: a língua francesa, com seu corpo e sua voz,
estabeleceu em mim um presídio orgulhoso,
enquanto a língua materna, plena tradição oral, em trapos e farrapos, resiste e
ataca entre dois espaços de respiração.
Acompanhando o ritmo do rebato, sou
alternadamente a estrangeira sitiada e a nativa que vai bamboleando até o lugar
da sua morte, dando-se então uma disputa que não parece ter fim entre a palavra
falada e a palavra escrita.
Versão: Miriam Adelman
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