Tradução a partir da versão em inglês do livro "Fantasia: an Algerian cavalcade"
Escrever na língua do
inimigo é mais do que rabiscar um monólogo resmungado em baixo do próprio
nariz; usar este alfabeto te exige
colocar teu cotovelo a uma certa distância na tua frente para formar um baluarte
- contudo, nesta posição torta, o que você escreve retorna como na maré.
Esta língua foi importada em um passado turvo e escuro, espólios
arrancados do inimigo com quem nunca se
trocou uma palavra afetuosa... O francês, que já foi a língua das cortes de justiça,
utilizada da mesma maneira por juízes e condenados.
Palavras de acusação, procedimentos jurídicos, violência - estas são as
fontes orais do francês dos colonizados.
Enquanto me aproxime ao inevitável cessar
fogo do final de cada guerra, minha escrita retorna com a maré às orlas abandonadas
do tempo presente e procura um lugar onde o armistício linguístico pode ser
negociado, um pátio com fontes borbulhando onde as pessoas vão e vêm.
Esta língua foi utilizada no passado para enterrar
meu povo; quando a escrevo hoje, me sinto mensageira do passado, carregando uma
missiva selada que pode ser uma sentença à morte ou ao calabouço.
Ao me despir nesta língua, inicio um
incêndio que pode me consumir. Ao tentar uma autobiografia na língua de quem
era o inimigo...
Após cinco séculos de
ocupação romana, um argelino chamado Agostinho começa a escrever sua própria
biografia em latim. Fala sobre sua infância, declara seu amor pela mãe e pela
concubina, se arrepende de sua época de devassidão e conta como foi finalmente
consumido pela paixão por um Deus cristão.
E sua escrita deslancha, com toda
inocência, na mesma língua de César ou Sulla - escritores e generais da exitosa
'campanha africana'.
A mesma língua passa dos conquistadores
aos povos assimilados; torna-se mais flexível após cobrir os cadáveres do
passado com uma mortalha de palavras... O estilo de Santo Agostinho levanta-se
junto com sua extasiada busca por Deus. Sem
esta paixão, ele voltaria à indigência: 'Tornei para mim mesmo o país da
indigência.' Se este amor não o mantivesse em uma viagem de euforia, sua escrita
seria auto-dilaceração!
Após o bispo de Hippo Regius, transcorrem mil
anos. O Maghreb testemunha uma procissão de novas invasões, novas ocupações...
Ataques repetidos de homens da tribo Banu Hilal finalmente sangram o país até a
brancura. Logo após essa virada fatal, o
historiador Ibn Khaldun, autor inovador
de A história dos bérberes, e figura
tão grande quanto Agostinho, arredonda uma vida de aventura e meditação ao
compor sua autobiografia em língua árabe, lhe dando o título Ta' arif. Quer dizer, 'Identidade'.
Como Agostinho, pouco lhe importa que escreve em
uma língua que foi introduzida na terra dos seus pais através da conquista e
acompanhada por sangria! Uma língua imposta tanto por estupro quanto por amor...
Ibn Khaldun tem quase setenta anos: após um encontro com Tamerlane - sua última
aventura - ele se prepara para morrer no Egito.
De repente, se entrega ao anseio de olhar para si mesmo: e se torna
sujeito e objeto de uma autopsia imparcial.
Da minha parte, mesmo
quando estou compondo as frases mais comuns, minha escrita é imediatamente capturada pela armadilha da velha guerra entre dois povos. Portanto, balanço como pêndulo, entre imagens
de guerra (guerra de conquista ou de libertação, mas sempre no passado) e um
amor ambíguo e contraditório.
Minha memória esconde-se numa montanha preta
de restos que se decompõem; os sons que a carregam rodopiam para cima e para fora
do alcance da minha caneta. 'Eu escrevo' declara Michaux, 'para empreender uma
viagem através de mim mesmo'. Eu viajo através de mim mesma ao capricho de quem
era o inimigo, o inimigo cuja língua roubei ...
A autobiografia praticada na língua do
inimigo tem a textura da ficção, pelo menos enquanto você continua
dessensibilizada, esquecendo os mortos que a escrita ressuscita. Embora pensasse
que simplesmente empreendesse uma 'viagem através de mim mesma', descubro que apenas estou escolhendo um véu diferente. Embora pretendesse que com cada
passo para frente eu me tornaria mais
claramente identificável, me descubro paulatinamente sugada pelo anonimato
dessas mulheres do passado - minhas ancestrais!
Sou obrigada a
reconhecer um fato curioso: a data do meu nascimento é mil oitocentos e quarenta e dois, o ano que o General General Saint- Arnaud chega para incendiar a zaouia do Beni Menacer, da tribo da
qual eu descendo, e ele entra em arroubos por causa das hortas, as oliveirais,
'as mais belas de toda Argélia', como descreve numa carta a seu irmão - oliveirais
que já desapareceram.
É o incêndio de Saint-Arnaud que ilumina meu caminho de saída
do harém cem anos mais tarde: é porque seu fulgor me rodeia que encontro a
força para falar. Antes de capturar o
som da minha própria voz , consigo escutar os últimos suspiros, os gemidos
daqueles que foram emparedados nas montanhas Dahra e dos presos da ilha de Sainte-Marguerite;
me fornecem um acompanhamento orquestral. Me intimam, me encorajam os passos indecisos, para que quando se der o sinal,
minha canção solitária se levante.
A língua dos Outros,
que me cerca desde a infância, a dádiva que meu pai me concedeu amorosamente, a
língua que se colou em mim desde então como a túnica de Nessus: é essa dádiva que
veio do meu pai que cada manhã me levava pela mão para me acompanhar à
escola. Uma pequena menina árabe, numa
aldeia do Sahel argelino...
Tradução/Imagem: Miriam Adelman